REFLEXÃO | (Des)fazendo (o) teatro. Sobre a experiência do fazer online

por João Veras*

reflexão crítica a partir da peça-filme Desfazenda: me enterrem fora desse lugar, do coletivo O Bonde, e da peça online Pessoas Perfeitas, dOs Satyros, produzida no contexto da oficina olhar a cena – Laboratório de Crítica Teatral, conduzida por amilton de azevedo no mês de agosto de 2021 de forma virtual no Sesc São Caetano. sete textos das pessoas participantes da ação inauguram a série vozes.

Um dia eu estava meio que distraído com essa vida de então quase isolado; aí lembrei que havia planejado assistir a peça Desfazenda – me enterrem fora desse lugar, do coletivo O Bonde (SP). Imediatamente entrei no site da Sympla e comprei o ingresso. Na hora marcada, acessei o YouTube no endereço indicado, segui as orientações, sentei e comecei a assistir ao espetáculo – que começou sem atraso! Semanas depois, também em casa, fiz o mesmo para assistir a outro espetáculo: Pessoas Perfeitas, da companhia Os Satyros (SP). Desta feita o acesso foi pelo programa de videoconferências Zoom.

Essa descrição de quase intimidade caseira tem razão aqui, pois pretendo refletir, pelo olhar de um espectador comum que sou, as duas experiências dentro de um contexto da relação teatro e internet e, com isso, da cena e do espectador, pelas quais a atividade teatral tem sofrido (no bom sentido) algumas mudanças – para alguns problemáticas e determinantes, para outros nem tanto. Quero meter minha colher nesse angu.

Nos dois casos, como prefiro, assisti às peças sem nada saber a respeito das suas dramaturgias. Gosto de ir procurando saber na hora, de ir aventurando minhas percepções, de ir buscando entender o que se passa no exato momento da encenação, de ir vivendo o espetáculo durante o tempo de sua encenação. Também não busquei, antes de assistir, informações nas fichas técnicas. Optei por esperar os seus finais para conferir. Prefiro ir às cegas guiado pela encenação viva que ocorre em tempo real (no caso de Pessoas Perfeitas). Este foi o meu modo de recepção das obras, desta feita “mediada” pela internet. É por onde se manifesta o produto da minha experiência perceptível.

Daí, o mundo a partir de agora é de surpresas. Vamos começar por Desfazenda. Vi, de primeira, que não se tratava de um drama, na sua forma clássica, aquela narrativa linear com os seus personagens em corpo, fala e ações se duelando em cena até o desfecho final esperado ou não pela plateia. Sem perder a perspectiva dramática, no sentido de uma trajetória focada em conflitos não exatamente encenados, mas narrados, percebi um formato centrado nas falas e posições cênicas simétricas dos quatro atores (três homens e uma mulher, todos negros).

Ailton Barros, Filipe Celestino, Marina Esteves e Jhonny Salaberg: O Bonde / foto: José de Holanda

 

 

 

São relatos de memórias, escritos de diários, mas também manifestos usando levadas de falas e de poemas falados, como visto em slams, ou cantados numa definida rítmica para as bandas do rap, do hip-hop. Vi também que o tema central da peça gira em torno da questão do racismo. Da condição negra. Da história da escravidão no Brasil, uma das inúmeras particulares. Disso tudo que é dor e que ainda não acabou.

Mais especificamente (isso só soube no final) dos relatos a respeito de crianças negras escravizadas no interior de São Paulo envolvendo a igreja, o poder político aliado ao nazismo – no que resultou numa montagem teatral livre, escrita por Lucas Moura e dirigida por Roberta Estrela D’Alva, a partir do documentário Menino 23 –  Infâncias Perdidas no Brasil, de Belisário Franca.

Então. Devo dizer agora o que será determinante para as próximas linhas. Confesso que esta foi a minha primeira experiência como espectador de teatro gravado (caso do Desfazenda) e também do ao vivo online (caso do Pessoas Perfeitas) – ou seja, de assistir teatro em casa, como se assiste filmes e programas de TV. Este fato determinou já ali a minha condição de espectador e as minhas escolhas quanto ao que observar, dar mais atenção, selecionar a respeito do que falar diante do que assistia.

Confesso que não foi a dramaturgia o que me prendeu e, por isso, não será a respeito dela o que aqui vou falar. Não por vontade. A distração em relação a ela foi acontecendo durante o espetáculo. A atenção estava voltada para a plataforma e como a experiência cênica se relacionava nela, com ela, a partir dela. É que fui levado a me perguntar sobre se o que eu estava assistindo era teatro ou cinema, posto que teatro gravado, aquele ali que eu estava assistindo, carregava muito da técnica de se fazer e se mostrar cinema.

A indagação se tornou norma no meu olhar. Desviou-me do texto. Não totalmente. O texto ia e vinha. A estética da montagem e seus elementos também. Mas a base de minhas observações centrava-se sobre a forma do que via na tela. Aquilo era teatro filmado ou cinema teatralizado? Eram as duas coisas juntas? Se isto é possível? E o que eu via não era cinema, nem era teatro assim “puro” como conhecemos? Também não era teatro filmado, tampouco filme teatralizado? Acho que assisti algo novo, algo que nasce e se desenvolve frente aos meus olhos. Essas questões me ocupavam enquanto a peça/filme se desenrolava.

A dramaturgia se desenvolve – isto parece evidente – em uma caixa cênica, portanto em um espaço teatral e também dramatúrgico (claro! claro?), como classicamente o conhecemos com as suas duas paredes laterais (que não estavam expostas, mas imaginadas), e as paredes de fundo e frontal, pelas quais as câmeras, e não a minha presença como espectador, captavam a atuação dos atores, a dramaturgia, enfim.

Mas as paredes sumiram na medida em que os atores eram captados por câmeras laterais,  diagonais e mesmo frontais. Assim, sem parede, tudo parecia se encontrar sem lugar. Tudo parecia ser filmagem. Não só por isso. Passei a ver cortes, planos, enquadramentos, zoom, focos, duplicação de imagens, transposição de cenas, captação das falas por microfones, imagens de fotografias em slides. A última cena é literalmente cinema com imagens externas de mar, céu e tudo.

Frente a isso, não poderia deixar de ver um montador em sua mesa dando forma a tudo aquilo. Enfim, passei a ver cinema. E porque não seria teatro? O teatro não se caracteriza – exatamente o que o difere do cinema – por ser uma encenação ao vivo num contínuo em tempo real e a presença diante dos atores de uma plateia?

Mesmo não sendo ao vivo, cabe alterar, numa mesa de montagem, o espaço cênico em todos os seus movimentos etc? Montagem em mesa, dramaturgia gravada, ausência de atores e público num único espaço e no mesmo momento ao vivo combinam com teatro?

Voltemos um pouco para a rotina do público. Falar da minha condição também. Há de se considerar que assisti à obra sem precisar sair de casa, guarnecido de toda comodidade que posso ter, mas também com as possíveis adversidades e imprevisões próprias de quem reside em uma casa. Tenho animais, pessoas da família, barulho de automóveis vindo do lado de fora, chegada de visita no aqui do agora, etc. Posso também assistir de novo o espetáculo que, por estar gravado, será exatamente do mesmo jeito que assisti, como um filme. Tudo isso pode não ser determinante, mas engrossa o caldo da diferença.

É patente o quanto que a pandemia empurrou a arte para a internet. E o teatro entrou ainda mais de cabeça no mundo virtual, no mundo digital, no mundo online. Novos são os vocabulários, novas são as gramáticas de experiências tecnológicas antes não provadas. Vem se experimentando diversas formas inclusive bem diferentes daquela que acabo de relatar. É o caso do segundo espetáculo que assisti – Pessoas Perfeitas da companhia Os Satyros, com dramaturgia de Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez e direção geral deste último. E o que vi? Várias personagens – tipos marginais/marginalizados – acontecendo em cena por seus conflitos, por suas dores que se entrelaçam e se identificam, dando ao espectador a experiência das suas visibilizações como humanos. A condição humana em profundidade. Belas interpretações. Um carrossel de imagens, estranhas imagens ao fundo de atores e atrizes firmes, majestosos, impávidos.

Da mesma maneira como em Desfazenda, em Pessoas Perfeitas fui envolvido pela surpresa da forma, pela novidade do meio pelo qual o teatro chegava a mim em casa. Naquele instante vivia mais a possibilidade – que se realizou ante meus olhos – de se manter a essência da conexão tão cara ao teatro que é a sua relação ao vivo com o público. A que tem se sustentado pela presença coeva da cena em ação e o público, ambos em um mesmo espaço/tempo. O que não vi – porque de fato não acontece – em Desfazenda, que assisti no YouTube.

Em Pessoas Perfeitas a plataforma utilizada é o programa de videoconferências Zoom. Por ele, os atores e os espectadores estão ao vivo presentes ao mesmo tempo e em um mesmo espaço comum, à vista de todos (quando ligadas suas câmeras) e não-físico. Eles estão em um momento real não só, de um lado, encenando e, de outro, assistindo, mas interagindo – inclusive dentro do espaço dramatúrgico.

Os Satyros em “Pessoas Perfeitas” / imagem: divulgação

 

É mais uma forma de fazer teatro. A dos Satyros não abre mão da presença ao vivo e da interação. Nesse sentido, há um momento metateatral em que um dos atores pede à plateia que responda à saudação de boa noite que virá de uma das personagens, devendo para tanto cada um dos espectadores ligar o seu áudio, responder à saudação da personagem e depois imediatamente desligá-lo. O que passa a acontecer em vários momentos até o final da peça, quando tal interação envolve os demais personagens. Aqui o teatro propõe a interatividade, dar um passe orientado ao espectador para que este adentre, de alguma forma, agora como personagem, na dramaturgia – a voz coletiva do velho coro das tragédias gregas. Tal qual a mais tradicional das dramaturgias.

Isto nos leva a pensar que, com a internet, o sentido único de presença vinculado à ideia de fisicalidade não pode ser mais exclusivo. É possível hoje estar perfeitamente presente com uma pessoa ou um coletivo sem que, com isso, esta presença seja necessariamente física, corporal.

É, de fato, uma experiência nova que não altera a velha. Estou me referindo especificamente a dos Satyros. Com ela o teatro não deixa de ser teatro. Ao mesmo tempo em que todos se encontram corporalmente separados uns dos outros, todos estão juntos. A ideia de presença não perde o seu sentido original. Ao mesmo tempo em que é ressignificada. Ninguém por esta vivência deixa de estar diante do outro, dos outros, de partilhar uma experiência comum no exato momento em que ela acontece, se realiza. Falo de uma realização fática. Todos nós, atores e espectadores, estamos ali vivendo uma experiência de produção dramatúrgica e de acesso a ela que não só é realizada no mesmo espaço (que dão o nome de virtual) e ao mesmo tempo, mas em plena interatividade. Isto a mim parecer ser – e é – uma realização real.

Portanto não pode ser considerado cinema porque o cinema é um produto manufaturado com antecedência para ser mostrado ao público já perfeitamente pronto, acabado. Não há interatividade nesse processo. Nas suas sessões, o único que  comparece é o espectador. Há uma separação entre o fazer, seu produto e o público. No que se aproxima a experiência da peça Desfazenda,onde o que o espectador assiste é resultado do que outrora fora filmado e montado. Nesta prática, o que se vê como resultado é o filme de uma peça original filmada (que para tanto sofre alterações necessárias ao novo meio), portanto um produto reprodutível. É o filme da peça, inclusive porque passou por uma produção de montagem e formatação anterior que é própria do cinema, e pelo qual impossibilita a associação das práticas coevas de apresentar e de assistir temporal e espacialmente copresentemente ao vivo.

Como compreendo, a experiência dos Satyros é o teatro fazendo uso da tecnologia digital, virtual e online sem deixar de ser teatro enquanto nova composição de fazer e assistir teatro; como uma variação do acontecimento cênico e um novo feitio de interação ator/espectador. Todos esses aspectos de novidade não são suficientes para alterar a ideia de teatro em sua essência, a ponto de confundi-lo com cinema, por exemplo. Portanto, se o teatro sempre foi uma experiência dramatúrgica realizada ao vivo – com a presença coetânea do espectador e dos atores – com potência de interatividade, dentro do mesmo percurso temporal e no mesmo lugar, não tenho como duvidar de que a experiência dos Satyros dá conta disso.

O que quero dizer é que as realizações que acabo de relatar demonstram o quanto a forma de fazer e também de assistir teatro foram alteradas com o advento da internet e seu esplendoroso avanço tecnológico, combinado com uma potência/imposição movida/possibilitada pela vida pandêmica. É certo que a mobilidade no campo da encenação dramatúrgica não é nada de novo. Mudanças vêm acontecendo desde que o teatro é teatro. As práticas online, virtuais e digitais têm as suas especificidades jamais provadas até então no campo cênico.

Tento constatar aqui que é indubitável que nas duas experiências dramatúrgicas a coisa se move ante os olhos do espectador, da mesma forma que este também passa a experimentar novas formas de lidar com isso tudo. As duas experiências que acabo de relatar são patentemente distintas na forma de fazer e de mostrar.

É perceptível no caso de Desfazenda a ausência da presença/relação pulsante, dupla e coetânea da de quem assiste com a de quem faz. Por este formato, pelo menos este que o grupo optou em fazer, a experiência dramatúrgica ganha outra configuração, a da espécie que combina as duas linguagens, podendo, assim, resultar numa terceira, de tipo híbrida. No caso de Pessoas Perfeitas não creio que resulte noutra coisa sua experiência enquanto teatro. O que não quer dizer que inexistam alterações no modo de fazer em si. Ali o teatro continua sendo teatro, mesmo que use outro espaço (com as suas evidentes especificidades) para se realizar.

Quanto ao aspecto estético da encenação, da materialidade cênica, é plenamente visível o quanto ambas as obras continuam provando formas diversas e distintas dentro do contexto do acontecimento cênico, da poética cênica. São duas plataformas digitais (duas novas formas de materialidades) – desta feita fazendo às vezes de espaços cênicos e para além deles, expandindo-os – sobre as quais cada encenador explora e experimenta as possibilidades que se lhes apresentam.

As “limitações” e as liberdades estéticas que estes espaços estranhos impõem, tanto para uma parte quanto para outra, são relativas para o resultado artístico. Nesse sentido, o que a mim parece indiscutível é o efeito disto (no que se desdobra), isto é, a singularidade de cada experiência em si, das duas configurações brevemente examinadas aqui, inclusive em relação àquela outra a qual estamos profundamente acostumados (dogmaticamente ou não), em relação a qual as formas online, virtuais e digitais são capazes de perder ou de ganhar, o que pode sugerir, para o campo estético, simplesmente outras variações do acontecimento cênico, porquanto – será exatamente por isto que – o teatro segue se fazendo.

* João Veras é um artista acreano de Rio Branco. Autor das obras Seringalidade – O Estado da Colonialidade na Amazônia e os Condenados da Floresta (editora Valer, 2017), Minhas Músicas de Invenção – Uma Experiência de Criação Sonora na Amazônia(editora NEPAN, 2019) e A Audiência dos Mortos – Sobre o Colonialismo Cultural no Acre (editora NEPAN, 2020). Contato: joao_veras@hotmail.com

Fonte: Ruína Acesa

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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