REFLEXÃO | Corpo sem Órgãos e Psicanálise: Carmo Dalla Vecchia e o Lugar de Risco Entre o Gozo e a Linguagem

Gosto de pensar que a grande revolução da humanidade não veio da ciência, mas de um lugar entre a filosofia e a antropologia. Falo de Antonin Artaud e seu grito contra a normatização dos corpos. Seu Corpo sem Órgãos, formulado em 1947 na peça “Para Acabar com o Julgamento de Deus”, é a imagem de um corpo em estado de urgência, em fluxo bruto, que recusa a domesticação e a anatomia. Um corpo que não serve a funções, que só pulsa. Um corpo que, ao tentar existir fora da linguagem, arrisca também a própria sanidade.

 

Pensei muito nisso ontem, ao ver as fotos de Carmo Dalla Vecchia na Parada LGBTQIA+. Um figurino simples, com bunda de fora. E, no entanto, uma comoção. Nos comentários da matéria, uma enxurrada de críticas. Ninguém parecia apoiar. Havia raiva, escárnio, um moralismo que parecia emergir de algum subterrâneo coletivo.

 

Carmo, ali, fazia um gesto que ultrapassava a performance. Colocava em cena a velha questão: a quem pertence o corpo? O Estado legisla sobre ele, define quem pode parir, casar, abortar, manifestar-se, trabalhar com o próprio corpo. O corpo é público quando convém, mas privado quando interessa ao poder. Ainda não nos apropriamos da ideia de um corpo que nos pertença de fato.

 

A psicanálise, por sua vez, nos lembra: o corpo é sempre simbólico. Só existe como tal porque foi recortado pela linguagem. Não há corpo fora do significante. Libido, pulsão, desejo – tudo opera sobre esse corpo falado, nomeado, interditado.

 

E é aqui que a tensão entre Artaud e a psicanálise ganha força. Artaud quer o corpo em estado puro, anterior à linguagem, fora da Lei. A psicanálise adverte: esse desejo tem um preço alto — o preço da psicose, da perda de qualquer laço social. Freud, em “Além do Princípio do Prazer”, já intuía essa pulsão pelo silêncio, pela dissolução de todas as amarras.

 

 

Em Lacan, o conceito que mais se aproxima do Corpo sem Órgãos é o gozo: aquilo que excede o campo do desejo, que escapa ao simbólico, e que pode devastar o sujeito. O gozo é real do corpo, mas só se acessa nos limites da linguagem – quase sempre, com dor.

 

A própria escrita de Artaud – caótica, fragmentada, gritada – é talvez uma tentativa desesperada de dar forma ao informe, de produzir um mínimo de simbolização para não se perder no real.

 

E então voltamos a Carmo. Um ator que cresceu como galã de televisão, cuja masculinidade foi projetada em lares por décadas. Que, ao assumir publicamente sua sexualidade, tornou-se também pai. Casado com o dramaturgo João Emanuel Carneiro, hoje é pai de Pedro, um menino de cinco anos.

 

O gesto de ontem, na Parada, não foi só um ato performativo. Foi um pequeno rasgo na trama simbólica. Um corpo dizendo: “eu existo assim.” Um corpo afirmando sua própria autoria.

 

Talvez a grande revolução – aquela que Artaud intuiu, mas que ainda nos escapa – seja justamente essa: a revolução dos corpos. Ainda estamos longe dela. Mas, de tempos em tempos, alguém tira a roupa no meio da multidão e nos lembra que ela ainda é possível.

 

Freud, talvez, sorrisse de canto de boca, como quem reconhece a armadilha: mesmo para dizer que quer sair da linguagem, o sujeito ainda precisa da linguagem. E talvez seja essa a grande questão dos nossos tempos: ainda não evoluímos ao ponto de reconhecer que aquele corpo de Carmo, ontem na Parada, não era apenas linguagem, mas antes um corpo dilacerado, sangrando, buscando seu espaço para dizer algo como: “eu existo.”

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1869

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