QUEM SABE ISSO QUER DIZER AMOR | Isildinha e o Manual da Onipresença — com humor e pipoca

Se houvesse uma escala Richter para medir a capacidade de multiplicar presenças, Isildinha Baptista Nogueira balançaria os sismógrafos já no bom-dia. Descobri isso num sábado glacial, cinco anos atrás, quando um Zoom entediado virou palco de assombro: lá estava ela, transformando a penumbra pandêmica da minha casa em Parelheiros num auditório de ideias em expansão. Terminada a aula do Cepsi, escrevi para agradecer e, por prudência, fiz aquele convite protocolar para “tomarmos um café virtual”. Ela topou antes do ponto final — e eu deveria ter entendido ali que Isildinha não conhece pré-aquecer: entra em cena já flambando.

Pouco tempo depois, precisávamos reformular o conselho de administração da Adaap. Convidei-a para compor a mesa, imaginando que, com sorte, aceitaria participar de longe. Pois bem: na primeira reunião, nosso saudoso Danilo Santos de Miranda levantou a mão e, com aquela autoridade tranquila de quem já viu de tudo, indicou Isildinha para concorrer à presidência. Minutos depois, ela foi eleita, sucedendo Maria Bonomi com a naturalidade de quem troca o tamanco pelo salto alto no meio do corredor. Os outros conselheiros — gente experiente em pleitos intermináveis — ergueram as mãos num raro consenso. Eu, convertido em plateia, aplaudi tentando disfarçar o queixo caído.

Vale um parêntese histórico: Isildinha não inaugura a linhagem psicanalítica no comando da Adaap. Lá nos nossos primórdios, quem pilotou o leme por sete anos foi o querido Contardo Calligaris, presidência que fincou as bases da instituição enquanto distribuía provocações intelectuais como quem oferece café recém-passado.

Desde então, conviver com Isildinha virou esporte de resistência. Almoços, jantares, teatro, debates, aulas — se alguém inventar o teletransporte, sugiro que usem seu calendário como modelo de stress-test. Quando não está em Porto Alegre, aparece em Salvador; na terça, surge em São Paulo para um almoço; na quinta, manda foto da janela em Paris. Tudo isso sem atrasar uma vírgula dos relatórios da Adaap nem o atendimento social que faz com os nossos alunos, tampouco os atendimentos que ela conduz em seu elegantíssimo e refinado consultório em Perdizes. “Tempo é uma categoria discursiva”, ela diz, enquanto troca de fuso com a elegância de quem muda de lenço.

Ano passado, juntamos nossas obsessões e criamos o coletivo Cinema e Psicanálise nas Brechas.Uma vez por mês, o Cine Bijou vira divã coletivo: projetamos um filme, mordiscamos pipoca e, então, as idealizadoras e fundadoras do grupo — as psicanalistas Ana Lucia G. Bastos, Bruna Elage, Patrícia Villas-Bôas, Roberta Kehdy, Lilian Carbone, Luciana Chauí e Vera Lucia Barbosa— dissecam imagens como quem lê sonhos. Sou o mascote masculino da trupe, função que exerço com humildade e headset pronto para captar cada insight. Já recebemos, por exemplo, o brilhante Thamy Ayouch, da Universidade de Paris, que saiu intrigado com nossa habilidade de gargalhar enquanto abríamos neuroses com bisturi teórico.

Há quem pergunte de onde vem tanta energia. Eu suspeito de uma combinação perigosa de humanidade e ironia bem calibrada: Isildinha escuta o outro até o fim – privilégio raro numa época em que todo mundo corta a fala alheia em “três, dois, mande áudios” – e devolve perguntas que fazem o ego tremer, mas sempre com um sorriso que anestesia.

Aí, quando você percebe, já está refazendo a agenda, o projeto e às vezes o sentido da própria profissão.

Resultado: nossos estudantes descobrem que o conselho de administração também pode ser abraço. A Adaap entende que governança é verbo que se conjuga no plural. E eu ganho uma amiga que me empresta tanto afeto quanto provocações intelectuais. Sou privilégio como quem espalha calor em manhã de serração, até que cada pessoa na sala se convença de que vale a pena insistir naquilo que um bom analista chama de desejo – esse motor que ela, por sorte, parece ter instalado em dose dupla.

Se um dia lhe disserem que a psicanálise é território sisudo, proponho teste simples: assistam a uma sessão de cinema com Isildinha. No escuro, entre um plano-sequência e outro, ela fará a pergunta exata que faz a gente gargalhar e pensar ao mesmo tempo. E, quando as luzes acenderem, você sairá com a suspeita deliciosa de que, sim, existe cura possível para o cinismo coletivo – e que atende pelo nome de Isildinha Baptista Nogueira.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1839

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