TEMPO, TEMPO, TEMPO | Quando o Minuto Vira Semente

Chegou rápido demais. Ainda ontem eu tropeçava nos vinte, convencido de que o tempo era um bicho domesticável. Agora, mal ergo a cabeça e estou prestes a completar 62. Inacreditáveis 62 — não pela conta dos dias, mas pela impressão de que eles se amontoaram sem pedir licença, como livros empilhados à pressa numa mudança. Porém, basta virar a lombada de cada volume para ver que a narrativa não foi corrida: foi densa.

Aos sessenta, abri portas que antes pareciam apenas janelas trancadas. Fiz da clínica psicanalítica o meu modo de sonhar a velhice: escutar para dentro, decifrar ruídos que antes eu abafava com a pressa de viver. O cinema tornou-se outra descoberta tardia, embora o Satyros Cinema pulse desde 2014. Percebi que ele existia, sim, mas ainda não era o meu mirante. Foi preciso a curva dos sessenta para que a tela se expandisse como horizonte íntimo.

Escrever também veio devagar, como quem planta sem alarde. Em uma década, mais de quinze livros tomaram forma, e dezenas de artigos viajaram muito além da Praça Roosevelt — Polônia, Estados Unidos, Reino Unido, Portugal, Finlândia. São pequenas pontes lançadas sobre o Atlântico e sobre mim mesmo, ligando o menino apressado de ontem ao homem que hoje respira entre travessias.

Envelhecer traz sabedoria, repete o velho Marquês de Sade, “mas nos tira o impulso”. Desconfio, contudo, que ele falava de um impulso que se mede a passos, a músculos, a febres momentâneas. O outro impulso, o mental, só se avoluma: é fogo que não precisa do corpo para queimar. Exige, porém, disciplina psíquica — essa academia invisível onde se alongam as ideias, se fortalecem as angústias e se aprendem silêncios.

Há quem conte o tempo em rugas ou em dígitos. Eu, agora, conto em pontes. Cada nova paixão intelectual, cada projeto aceito como se fosse impróprio para a idade, estica uma pinguela sobre o abismo do tédio. Talvez a verdadeira velhice comece quando deixamos de erguer pontes e passamos a registrar apenas os rios que já não cruzamos.

Se algo me falta, não é impulso; é fôlego para tantos caminhos. Mas o próprio cansaço ensina cadência: percurso mais vagaroso para que o mundo me acompanhe. Descubro, enfim, que a pressa foi só um disfarce da ansiedade de aprender. Hoje, aprendo melhor — e sem disfarces.

Quando o próximo minuto chegar, pretendo plantá-lo em silêncio, como quem lança uma semente ao solo fértil da experiência. Porque o tempo, quando bem cultivado, não se esgota: germina.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1853

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