O disjuntor é um interruptor elétrico projetado para proteger um circuito de danos, causados por falhas na alimentação elétrica. Quando acontece alguma sobrecarga, o aparelho desarma e interrompe o funcionamento de sua rede, impedindo que os eletrônicos conectados à sua cadeia se rompam. Nós, seres humanos, possuímos vários sistemas de proteção. Ao sistema imunológico, por exemplo, cabe a árdua tarefa de proteger nossos organismos contra quaisquer infeções. Desta maneira, quando algum microrganismo entra em contato com nosso corpo, o sistema imunológico o detecta rapidamente, acionando mecanismos de defesa para o combate de uma possível infecção.
Não seria diferente com nosso aparelho psíquico, que é dotado de mecanismos de defesa que são colocados em ação pelo nosso inconsciente para evitar conflitos com nossas ações e garantir algum equilíbrio em nossas decisões cotidianas. Estes mecanismos de defesa nada mais são do que técnicas de ajustes básicos que têm como única função o nosso equilíbrio psicológico, funcionando como mediadores entre nossos processos mentais e nossos entornos, para proteger o ego de entrar em contato com o id, onde estão as expressões de nossos impulsos e desejos mais íntimos.
Por exemplo, quando um dependente químico nega seu vício dizendo que consegue controlar sua dependência, é seu inconsciente que está negando os efeitos nocivos da droga para não enfrentar o superego.
Em “Estudos sobre a histeria”, pela primeira vez, Freud observa um fenômeno clínico que irá chamar de Spaltung, e que fará parte de seus estudos a partir de então. O termo é mostrado pela primeira vez em seu texto “Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos”, de 1893. Freud inicia aí uma grande pesquisa em que a Spaltung será colocada como um dos mecanismos de defesa.
Mas, embora criados por Freud, é sua filha, Ana Freud, quem irá elaborar mais consistentemente os mecanismos de defesa, a partir de sua obra “O ego e os mecanismos de defesa”, de 1936. Mais tarde, entre os anos 1930 e 1940, Melanie Klein irá considerar a Spaltung como a defesa mais primitiva contra a angústia. Irá dizer que neste mecanismo de defesa existe uma cisão tanto a nível do ego, como ao nível do objeto primário – a mãe, o seio da mãe, por exemplo. Este objeto, motivado pelas pulsões eróticas e destrutivas, irá dividir-se entre “bom” e “mau” objeto e descobrirão destinos independentes no jogo das introjeções e das projeções. Ainda segundo Klein, esta cisão do objeto acontecerá na posição esquizoparanoide, que é estruturada até os primeiros quatro ou cinco meses de vida de um bebê, e irá incidir sobre um objeto parcial (o “seio bom” ou “seio mau”), servindo para afastar o “mau” objeto e permitir a identificação com o “bom” objeto.
A Spaltung, ou divisão; ou, ainda, clivagem, é dos mecanismos de defesa mais complexos. Estamos falando da divisão do eu e do outro. Quando eu separo as coisas em duas características radicalmente opostas e, então, passo a me identificar com o espectro da coisa toda, entendendo o que é “bom” ou “mau”. Ou eu sou bom ou sou mau; ou me amam ou me odeiam. Como se a vida pudesse ser separada apenas nestes dois extremos, mas com uma função muito objetiva. Ao separar o “mau” do “bom”, eu e o outro seremos distintos.
Spaltung, portanto, é a cisão do ego; a separação da realidade material e da realidade psíquica. Acontece inicialmente nos quatro primeiros meses de vida de um bebê, quando sentimentos violentos como ódio, medo ou inveja exterminam todas as suas possibilidades de entrar em contato com as emoções, de um modo geral, e, por último, com as realidades psíquicas. Por exemplo, quando um bebê recebe o leite de sua mãe, ele é tomado por sentimentos “bons” e “nobres”, mas quando a mãe interrompe o ato da amamentação, é necessário que este bebê ultrapasse as fronteiras do “bom” – reveladas através do prazer da sobrevivência e que o próprio ato, normalmente, produz – para entender que existe a indignação, a fúria e o ódio, para que, assim, descubra o amor e a proteção. Esta é a experiência da Spaltung.
Definido como divisão ou polarização de crenças, ações, objetos ou pessoas em bons e maus, a Spaltung é um mecanismo de defesa que opera sempre entre os polos negativos e positivos. No espectro social, encontramos o tempo todo essa divisão. Por exemplo, o cidadão que torce para um determinado time de futebol e que acha que tudo o que vem dessa equipe é “bom” e que tudo o que surge de seus adversários é “ruim”. Ou a polarização política, onde o candidato X é “bom” e, portanto, tudo o que surgir de seu adversário será sempre algo “desprezível”.
A Spaltung tanto pode se relacionar com o ego ou com objetos – a representação mental de objetos externos –, conforme as necessidades do ego, e é um recurso estruturante no desenvolvimento da personalidade. Ainda segundo Melanie Klein, ao assumir a negação, a Spaltung estará sendo trabalhada pelo ego o tempo todo na vida cotidiana de um adulto. Freud também abrirá espaço para investigações neste sentido, ao estudar a perversão fetichista.
Em “O fetichismo”, de 1927, Freud irá descrever uma situação em que a Spaltung chega a causar uma neurose obsessiva moderada em um de seus pacientes; supondo, caso se tratasse de uma psicose, uma dessas correntes – a que estivesse ajustada à realidade – estaria ausente. Irá concluir que a renegação de uma percepção da realidade – no caso do fetichismo, a ausência do pênis na mulher – seria o grande objeto da Spaltung desenvolvida, neste caso específico, na vida deste paciente.
Freud também vai dizer que o processo de Spaltung ratificará sempre a coexistência no ego de “duas reações contrárias, ambas válidas e eficazes”. Enquanto uma recusa a realidade, a outra a aceita. Mas com algumas condições porque “uma fenda no ego a qual nunca se cura, mas, ao contrário, aumenta à medida que o tempo passa”.
Ainda segundo Freud, a cisão do ego acontece em duas atitudes psíquicas que coexistem e se contradizem ao mesmo tempo, considerando a renegação da realidade, sendo diretamente confrontada do “desligamento” de uma parte do ego em relação ao mundo externo. Essa defesa, no entanto, nunca alcança êxito, uma vez que a parte “desligada” continuará ativa, trabalhando com suas complicações na vida psíquica.
Diante da vivência de uma experiência subjetiva traumática, a Spaltung é um recurso funcional radical de sobrevivência psíquica. Como boa ferramenta que é, e com eficiente plano de sua adaptação à realidade, é a mais poderosa guardiã da vida ou da sobrevivência psíquica. Um mecanismo de defesa como se, para sobreviver, fosse necessário quebrar um pedaço de si.