PSICANÁLISE | Quando Pedro fala de Paulo

Nesses dias, o psicanalista Antonio Quinet enviou uma mensagem com a tradução da fala de uma psicanalista francesa, proferida em um colóquio em Paris cujo tema era diversidade, identidade e singularidade sob o ponto de vista psicanalítico. Preocupado com a repercussão, Quinet traduziu e divulgou o texto para sustentar a ideia de que a senhora não havia sido racista, tentando livrá-la desse lugar incômodo. Arrematou com um resignado “quem conta um conto aumenta um ponto”, como quem pretende varrer a poeira para debaixo do tapete e declarar a sala limpa. Mas, claro, o efeito foi o oposto: a fala da francesa estava carregada de racismo ao invisibilizar o processo escravista francês ao falar da Revolução Francesa.

Fiquei pensando… Eu começaria respondendo a Quinet por outra frase bem mais adequada: “Quando Pedro me fala sobre Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo.”

Porque a fala infeliz da psicanalista, trazendo a Revolução Francesa para o debate, é de um colonialismo escancarado. Desses que não se disfarçam nem com a ajuda de um bom tradutor. Não existe equivalência. E Balzac, por exemplo, não trata da escravidão nem do colonialismo diretamente. Ele escreve sobre a sociedade burguesa francesa do século XIX, que já não conhecia a escravidão. Ou seja: ela vai lá, tira Balzac da estante, sacode a poeira e tenta usar um europeu para explicar a experiência dos colonizados. Então diz que a homofobia, a exploração das classes populares, a espoliação de metade da população pela outra equivaleriam ao que se viveu nas colônias e na escravidão. Não dá. O proletário francês, por mais espremido que fosse, ainda podia vender sua força de trabalho a outros capitalistas e mantinha um mínimo de subjetividade a que tinha direito. Já o escravizado era tratado como objeto, mercadoria, sem direito sequer a ser gente. Impossível comparar Balzac com o que acontecia nas colônias – inclusive nas francesas – no mesmo período.

Outro trecho digno de nota: “Usamos as mesmas palavras para descrever conceitos que têm configurações e histórias diferentes.” Quem disse? Balzac nunca usou a palavra “escravo”. Nem podia. Ele nem conhecia essa palavra no sentido em que a usamos, porque, na França metropolitana, não havia escravos (embora nas colônias, a escravidão só acabaria em 1848). A palavra “escravo” pertence a um contexto colonial e é indispensável para descrever a estrutura da colonização.

Acredito que Lacan, quando diz que as palavras também moldam o nosso estar no mundo, quis dizer justamente que há palavras para experiências que os europeus nunca viveram. Por isso mesmo, é tão difícil para os franceses discutirem a questão racial sem a menor ideia do que isso significa na carne.

E, para coroar, um colóquio brasileiro em Paris com comentadores, vejam só, todos franceses. É de uma petulância tão elegante que chega a ser quase cômica. Por que diabos nossos analistas precisariam do crivo de quem jamais experimentou os processos de colonização que nós vivemos?

Foi racista, sim, e ponto final. O que faremos com isso? Domingo (20/07), a partir das 11h, a gente responde. Por uma psicanálise decolonial.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1899

5 comentários em “PSICANÁLISE | Quando Pedro fala de Paulo

  1. a ideia q saber mais sobre quem me diz algo de outrem do que do próprio outrem é muito real e o seu alerta sobre isso inspira a relembrarmos que a falta do olhar pra si e do conhecer a si mesmo a fundo são extremamente maléficas

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