PSICANÁLISE | Havia um sonho no meio do caminho ou Bion me ensinando a sentir

Ivam Cabral

Eu levei mais de dez anos para entender um sonho. E foi justamente em uma aula, em um curso de especialização em psicanálise, que algumas respostas vieram para elucidar as infinitas questões que aquele sonho traria aos meus dias. Até ali, corporeidade e mundo psíquico eram departamentos distintos.

Em 2013, exatos dez anos atrás, fiz uma viagem de férias inesquecível. Trinta dias entre Egito e Israel, a partir do Cairo, que se iniciou com um cruzeiro pelo rio Nilo, de Assuã a Luxor, e seu Templo, um dos maiores exemplos da exuberante arquitetura faraônica, consagrado à tríade tebana Amon, Mut e Khonsu, construído em 1.400 a.C. e modificado por diversas dinastias, até por governantes posteriores, como Alexandre, o Grande, por volta de 300 a.C.

Em Israel, viajei pelo país conhecendo lugares tão incríveis quanto surpreendentes. Mas foi em Kiryat Shmona, ao norte de país, na fronteira com o Líbano, que vivi uma grande experiência. Era 9 de janeiro, aniversário do meu pai, que completaria, se estivesse vivo naquele dia, 91 anos.

Naquela noite, eu tive um sonho com meu pai, José, que era pedreiro de profissão. Sem saber ler ou escrever, sempre foi muito ingênuo. Morreu em 1999, acreditando que sua doença, um câncer severo, era uma pequena indisposição que passaria no dia seguinte. Me lembro bem, em suas sessões de quimioterapia, uns anos antes de sua morte – quando perdia a consciência e entrava em delírios –, via sempre um grande salão de baile onde dançava com as mulheres mais lindas. Era bonito ver meu pai descrever esses momentos. Porque mesmo no sofrimento, ele continuava se alimentando de um sonho ou outro.

Vivendo sempre na mesma cidade onde nasceu, em Ribeirão Claro, no interior do Paraná, meu pai, mesmo antes de ficar doente, construiu seu próprio túmulo. Durante anos, cuidou de sua sepultura com o maior zelo do mundo. Sempre que ia visitá-lo – eu saí de casa aos 18 anos –, ele fazia questão de me levar ao cemitério para me mostrar sua obra. E quanta poesia eu tirava desses dias, meu Deus!

Assim, pensando nas histórias do meu pai que fui dormir naquela noite, 9 de janeiro, no kibbutz Misgav Am, em Kiryat Shmona.

O sonho veio sereno. Tudo era colorido, com intensidade suave e, nele, um baile onde meu velho dançava com mulheres bonitas. Meu pai, ali, era mais jovem do que eu, que deveria ter a idade dele quando morreu. Em espelho, eu aparentava ser o seu progenitor e ele, meu filho. Não havia outros homens ali, além de nós dois. O cenário era o Templo de Luxor e, no centro, meu procriador dançando e uma fila de mulheres, todas desconhecidas, que o esperavam para o rodopiar de uma valsa. Em determinando momento eu também dançava, mas sozinho, no canto onde me encontrava, distante do centro da cena.

No sonho, não bastou, no entanto, olhar para ele apenas como manifesto e o que importava não era exatamente aquilo que eu me lembrava dele. O manifesto, ali, era o latente e chegou em minha análise pessoal, quando voltei das férias, como um conjunto de significações que até hoje esbarram em mim em movimentos. Sim, é literal, estou falando de corporeidade. Explico.

No café da manhã do kibbutz em Kiryat Shmona, Rodolfo, meu companheiro de viagem e de quarto, me revelou que, naquela madrugada, acordou comigo dançando sonâmbulo pelo quarto e que havia ficado preocupado porque aquela dança lhe pareceu interminável.

Neste dia seguinte e nos próximos, caminhei dançando por onde andei. Me lembro que na época eu tinha um iPod, um aparelho de armazenamento de áudios, onde havia criado uma playlist que chamei “Estranha Juventude”, apenas com canções que tocavam nos períodos da minha infância e juventude. Com o fone de ouvidos e ouvindo aquela seleção, dancei o dia todo, entre passeios e caminhadas.

Engraçado que aquela sensação permanece até hoje porque aquele sonho havia surgido como uma experiência corporal. Infinitas vezes eu levei para a minha análise pessoal esse sonho e todas as sensações que ele me provocava. Até hoje, estilhaços daquela noite permeiam muitas vezes os meus dias. E aparecem sempre em momentos quando estou relaxado; por exemplo, quando estou caminhando com meu cachorro Chico, ouvindo música e me esbarro com alguma canção da playlist daquela viagem, da minha estranha juventude.

Sabemos que arte e cultura servem, de certa maneira, para manifestações dos nossos psiquismos. Bion disse que a cultura é o meio mais eficiente para expressar o psiquismo e que a psicanálise estimula o que encontra nele. Também nos ensina que a psicanálise, como filosofia aplicada, pode ser a barreira de contato entre o consciente e o inconsciente, propondo o sonho e o pensamento. Afinal, o pensar primitivo é a verdadeira essência do sonho.

Bion também nos ensina que a mente, por ser multidimensional, é por si sua grande experiência e a razão sempre será importante porque o racional segura a emoção. A minha busca, ali, e até os dias atuais, era como eu poderia pensar podendo sentir aqueles conteúdos. A psicanálise, neste caso, como escolha de vida, da distância entre alguma coisa. Um vir a ser, um tornar-se. Me interessava a experiência.

Havia se passado um tempo grande entre a morte do meu pai e aquela noite em Israel poderia me trazer algum crescimento. Afinal, Bion também nos alerta: um crescimento só poderia acontecer com alguma mudança catastrófica. E eu precisei viver quase 50 anos para entender isso.

Transformações em conhecimento têm a ver com aprender com a experiência, em contato direto com o psiquismo, sem conhecimento antecipado. E meu Édipo estava acontecendo exatamente nessa experiência.

Por diversas vezes, em autoanálise, tentei buscar o conhecimento da vida real, sem mazelas. Me interesso pelo primordial, pela origem e pela observação. Então, daquele sonho, o importante era vivenciá-lo através do que eu não conhecia, com o que me horrorizava, e, sobretudo, com alguma triangulação.

Entre mim e meu pai, existe alguma coisa. O caminho era entender de onde eu vinha e para onde poderia caminhar. Com sabedoria, no sentido de um impacto que passasse, especialmente, pelo sentido estético do que estava vivendo ali.

Estar naquela viagem de férias, mergulhado literalmente na antiguidade, fazia todo o sentido. Afinal, um pesquisador movimenta a partícula sempre. E eu estava disposto a esta movimentação. Me interessava modificar a realidade, jamais fugir dela. E, sabia: estar em contato comigo mesmo já era uma ação.

Afinal, sabemos desde sempre, não escolhemos as nossas emoções, somos permeados por elas. Deste modo, aquele sonho me atravessava; e, pensar nele, também era me colocar à sua disposição. E à disposição, também, da vivência de uma experiência porque o pensamento, que é uma atividade mental, posterga uma ação e já surge como uma prática emocional. Provavelmente este pensar brotava do inconsciente e o bom senso e o racional eram apenas defesas.

Durante anos fui pensando no que tinha vivido naquela viagem. E foi em uma aula de Bion, com a psicanalista Anne Lise Scappaticci que, pensando na atemporalidade da vida mental e na psicanálise como estimulante do psiquismo, que passei a pensar na multidimensionalidade da mente que coloca nossa existência em algum lugar no “entre”. Anne Lise, a professora, disse naquele dia:

— Nascemos no meio de alguma coisa: da vida dos nossos pais, por exemplo. Desta maneira, estaremos no meio. Sempre.

Aquele sonho, entre algum espaço e tempo da minha vida, numa noite onde dancei naquele quarto de hotel, no norte de Israel, foi sonhado por ele, o sonho. Eu não havia escolhido sonhar aquele sonho. Sorrateiramente ele me tomou para si e me colocava em um entre alguma coisa. E eu sabia, tinha certeza, uma coisa era a dor da morte do meu pai; a outra, o modo que eu lidava com ela.

Entre minha análise pessoal e intermináveis momentos de autoanálise, evoquei Bion que afirmava que o Édipo era uma questão central. Não pelo sexo, mas pelo pensamento movido pela emoção. Eu estava vivenciando o meu complexo de Édipo no sentido que estava, além de uma busca por alguém, tentando encontrar a mim mesmo, como naquele sonho que trazia um fato imaterial. Afinal, estava propondo um estudo epistemológico sobre mim mesmo.

Em princípio, qualquer objeto psicanalítico é científico. Só depois estético. Se Freud se pauta da consciência, Bion irá buscar elementos do inconsciente. Porque Bion, que trabalha em relação ao dentro/fora, labuta com a intuição de Freud. A não integração, assim, é o início de tudo e a identificação projetiva é o ponto zero do pensamento.

Na perspectiva da vida psíquica como nossa grande companheira, o pensar surgia como uma solução para se lidar com a frustação e dava margem para o protopensamento, o pensamento que existe no pensador, segundo o próprio Bion.

A psicanálise é esse desconhecido que é ela mesma e se ocupa daquilo que a gente desconhece. Porque, é certo, a realidade é algo que existe, que é, simplesmente; mas a realidade psíquica sempre será ficção. Os orientais entendem isso melhor que nós porque não têm necessidades de compreensão, os fatos se apresentam e se revelam como fatos. Simples assim.

Mas para nós, ocidentais, precisamos buscar explicação para tudo. Assim, a psicoterapia poderá até trazer a cura; mas a psicanálise não terá esta função. Porque a experiência analítica é selvagem e profunda, e a vida, que é mais importante que ela, a transformará em um instrumento, simplesmente. E aquele sonho era prova cabal disso.

Para mim, a partir daí, a psicanálise passaria a ser um território também da fisicalidade, da presença física; e a experiência, o espaço para sua reflexão. Como para Bion, o sonho, que já é pensamento, passaria a fazer parte dessa conversa. Deste modo, meu Édipo começaria, a partir de então, a fazer parte das minhas indagações em relação ao sonho daquele já longínquo 2013.

Entendi, a partir disso, que a perda da ilusão acontecia toda vez que admitia que não sabia alguma coisa e, desta forma, meus pensamentos postergam qualquer ação. É evidente, o sensorial vem primeiro e só em seguida o abstrato poderá se configurar.

Como Bion colocou, o Édipo surge primeiro como ação e só depois poderia ser compreendido como abstração. O pensamento surgia como realização para que o aprendizado viesse a partir da experiência.

Percebi também que sem intuição não haveria vocação e que o psíquico poderia, sim, ser o meu espaço para a espiritualidade, por que não? Ao fim e ao cabo, a realidade independerá sempre de mim; da minha realidade psíquica, todavia.

Com isso, aprendi a não desprezar a intuição.

— Ninguém, nem analista nem nossas mães, nos ensinará a viver, nos ensinou Anne Lise naquela aula.

Como ilustrou Bion, os analistas são profanadores de tumbas, tão somente. Então, busquemos a tolerância e a superação de nossas dúvidas, estimulemos nossas imprecisões e ambiguidades e busquemos a simetria entre as lideranças, aprendendo com a experiência.

Uma sessão de análise é, a todo momento, uma catástrofe anunciada. Mas, importante, deve ser controlada. O trabalho é com o imprevisível que, enfim, é tudo.

A análise é o local do difícil, do desconfortável, da desconstrução. E, contrapondo Descartes, o existir não partirá necessariamente do pensamento.

— Nem todos os sujeitos pensam, provocou a professora, em uma outra aula.

Assim, em coro com o neurocirurgião António Damásio, vamos esquecer o pensamento – só por um momento – e aplicarmos um novo raciocínio à questão. Ficaria assim:

— Sinto, logo existo.

E para finalizar, bem importante. Mais um ensinamento da mestra Anne Lise:

— A ilusão deve ser levada a sério pelos psicanalistas. Afinal, os métodos não são definitivos e, como afirmou Blanchot, “a resposta é a desgraça da pergunta”.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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