PSICANÁLISE | As camadas invisíveis da memória

A memória não é uma estante com pastas etiquetadas. Não é uma sala de arquivos, nem uma linha reta com marcos bem definidos. Ela é, antes de tudo, um organismo vivo, que respira e se transforma enquanto a vida segue. Quando pensamos em memória, tendemos a imaginar um cofre fiel, guardião impecável dos fatos. Mas a verdade é outra: o que chamamos de lembrança é quase sempre uma narrativa costurada a muitas mãos, com pontos frouxos, remendos e, sobretudo, com silêncios.

Na psicanálise, aprendemos que recordar é mais um ato de invenção do que de recuperação. Não há um “arquivo morto” esperando por nós: há cenas em trânsito, pedaços de imagens que vão e voltam, misturando-se ao que sonhamos, ao que tememos e ao que gostaríamos que tivesse acontecido. Cada vez que lembramos, reconstruímos. E cada reconstrução é contaminada por aquilo que somos hoje. A memória é, no fundo, um exercício de autoria.

Freud, com sua escuta radical, percebeu que algumas das lembranças mais nítidas, aquelas que parecem carregadas de detalhes precisos, são, na verdade, armadilhas do inconsciente. São as chamadas memórias encobridoras. Pequenos episódios aparentemente banais — a cor de uma parede, o gosto de uma fruta, o som de uma porta rangendo — que surgem com uma nitidez quase cinematográfica, mas que, na verdade, encobrem algo mais profundo, mais antigo, mais difícil de nomear.

Essas memórias cumprem uma função: proteger. Quando a verdade da experiência é dolorosa demais para ser suportada, o inconsciente constrói atalhos, cria distrações, planta pequenas cenas no lugar daquilo que realmente nos atravessou. O trauma se esconde atrás de um aniversário feliz, de um passeio no parque, de uma conversa trivial. Não por malícia, mas por cuidado. Como se a psique dissesse: “Ainda não é tempo.”

E assim seguimos, muitas vezes contando para nós mesmos versões suavizadas da nossa história. “Aquele verão foi lindo”, dizemos, ignorando que foi nele que, sem entender muito bem, sentimos pela primeira vez o peso de uma ausência definitiva. “Minha infância foi normal”, repetimos, como quem tenta convencer o próprio corpo a esquecer os sustos noturnos, os abusos, os silêncios pesados à mesa do jantar, os segredos que se acumularam sob os tapetes da casa.

O processo analítico, quando bem conduzido, é uma espécie de arqueologia delicada. Não se trata de cavar de forma abrupta ou violenta, mas de escutar os ecos. Cada relato, cada sonho, cada ato falho é um vestígio. Uma pista. Uma rachadura por onde a verdade antiga pode, um dia, escoar.

Há quem pense que o trabalho analítico seja uma busca obsessiva por “lembrar o que foi esquecido”. Não é exatamente isso. A psicanálise não é uma caçada por fatos, mas uma escuta dos sentidos que a memória foi criando ao longo dos anos. O que importa não é recuperar o episódio exato, mas compreender o desenho que o inconsciente fez com as cores disponíveis naquele momento.

E por mais que pareça paradoxal, é graças a esses mecanismos de defesa — como as memórias encobridoras — que seguimos vivendo. Elas são uma tentativa de saúde, não de doença. São uma prova da inteligência da psique. O inconsciente sabe que é preciso um tempo, um amadurecimento, uma rede de sustentação para que certas verdades possam ser acessadas sem que nos desfaçamos por completo.

Por isso, quando nos lembramos de algo com muita clareza, vale sempre desconfiar um pouco. Não por paranoia, mas por curiosidade. Porque talvez, atrás daquela imagem luminosa de uma tarde de verão, esteja escondida a primeira cicatriz. Porque talvez, atrás da memória de um riso, exista o eco de um choro ou de um sonho interrompido.

No fundo, a memória não quer nos enganar. Ela quer apenas que sobrevivamos. Que continuemos caminhando, mesmo sem saber ao certo de onde partimos. E talvez seja essa a mais humana de todas as estratégias: esquecer o bastante para seguir adiante, mas lembrar o suficiente para, um dia, encontrar o caminho de volta a nós mesmos.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1856

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