Na clínica psicanalítica, o espelho não está na parede — está entre as palavras. Não é de vidro, é feito de silêncio, de lapsos, de retornos insistentes. Costumo dizer que eu sou a minha clínica. Parece afirmação solene, quase litúrgica, mas é só um reconhecimento simples. Se colocássemos todos os meus pacientes lado a lado, em fila, com seus sintomas, suas fantasias, suas resistências, veríamos ali um retrato possível de mim mesmo. Um negativo revelado não em papel fotográfico, mas em afeto, tempo e vínculo.
E é isso que me impressiona. Atendo os mesmos pacientes há anos. O mais “novo” entre eles está comigo há mais de três. Os outros, há bem mais tempo — tempo esse que já deixou de ser cronológico para se tornar atmosférico. Eles respiram comigo. Somos cúmplices de uma travessia sem mapa.
Freud já dizia que o afeto é o que nos move. O vínculo não é adereço. É motor. Quando o vínculo está presente, os manejos se tornam menos calculados e mais vivos. Podemos errar e, ainda assim, seguir. Podemos tropeçar e ainda haver um chão que nos acolhe. Esse chão é construído juntos. Cada sessão é um tijolo, cada silêncio um cimento, cada riso uma trégua.
Não há manual que ensine o manejo de uma transferência antiga, daquelas que já estão impregnadas de história e ternura, de cansaço e reinício. É preciso escuta, mas também é preciso pele. O analista é também corpo — corpo que acolhe, sustenta e às vezes vacila.
A cada paciente que reencontro em meu consultório, me reencontro também. Nas dobras da fala deles, eu me reconheço, me questiono, me contradigo. Porque não há neutralidade possível sem verdade. E a minha verdade é essa. Sou feito também dos outros. Daquilo que eles me dizem — e daquilo que, sem saber, dizem de mim.
Talvez este seja o lado mais sagrado do ofício: a possibilidade de ser atravessado. Não como quem se anula, mas como quem se oferece em presença. A clínica é uma espécie de altar pagão onde o analista, sem dogma nem púlpito, se vê multiplicado. E, nessa multiplicação, às vezes assombra-se, às vezes consola-se.
Quando penso na minha clínica, penso numa fotografia de longa exposição. Não é o clique rápido do instantâneo, mas aquela imagem que só aparece depois de muito tempo exposta à luz — ou à escuridão. Eu sou essa imagem. Com todas as dores e delícias de ser quem eu sou. Com todas as perguntas que ainda não respondi. E com a profunda gratidão por ter, a cada sessão, a chance de continuar aprendendo.