Segundo o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo, Marcos da Costa, a proibição da montagem da peça “Edifício London” pelo grupo Os Satyros exemplifica um conflito de interesse social comum na Justiça: direitos de expressão podem ir de encontro aos direitos individuais, como os da privacidade.
No Brasil, diz Costa, “são incontáveis as disputas envolvendo livros, filmes e peças nas quais o magistrado se vê diante do embate [existente entre esses dois direitos]”.
Um exemplo de conflito similar foi a publicação pela editora Planeta da biografia não autorizada do cantor Roberto Carlos, escrita por Paulo César de Araújo. Após ação movida pelo Rei na Justiça, em 2007, livrarias do país ficaram proibidas de comercializar o livro. Em Portugal, contudo, a venda da obra é permitida.
Pelo Código Civil em vigor, explica Costa, há o entendimento de que nenhum desses dois direitos é absoluto. Qualquer um deles “pode sucumbir diante de outro interesse igualmente legítimo e de mesma importância social”. A liberdade de expressão é ainda garantida pela Constituição brasileira.
Cabe ao Poder Judiciário definir, no choque, qual deverá prevalecer dentro do devido processo legal.
Satyros X Mãe de Isabella
Com texto escrito por Lucas Arantes, o espetáculo “Edifício London” se inspira no caso do assassinado de Isabella Nardoni. Ela foi morta em 2008, aos cinco anos de idade. Seu pai e sua madrasta foram condenados na Justiça pelo crime. Diferentemente do livro sobre o Rei, a peça não cita nomes, senão o do edifício que serviu de cenário à tragédia. Há ainda, no texto, referências a clássicos da dramaturgia, como “Macbeth”, de Shakespeare, e “Medeia”, de Eurípedes.
O pedido de cancelamento da montagem na Justiça partiu da mãe de Isabella, Ana Carolina Oliveira, que se sentiu ofendida com a possibilidade de ver o drama representado no palco. A peça estrearia no início de março, mas teve sua temporada cancelada após decisão judicial assinada pelo desembargador Marcelo Fortes Barbosa Filho, da 6ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo.
O texto da decisão judicial argumenta que, para Oliveira, a peça faz “remissão direta ao homicídio de que sua filha foi vítima, na qual, ‘em verdadeira aberração’, é, inclusive, lançada uma boneca decapitada por uma janela, configurando violação à imagem de sua filha morta e efetiva agressão a sua pessoa”.
“Aberração”, lembra o vice-diretor do teatro da USP Ferdinando Martins, foi o termo que censores utilizaram para se referir às peças de Nelson Rodrigues, durante o regime militar. “Essa mesma palavra foi utilizada pelo desembargador Marcelo Fortes Barbosa Filho em sua decisão proibindo ‘Edifício London’ de entrar em cartaz”, prossegue o autor de “Corpo, Comunicação e Censura: um Estudo a Partir do Arquivo Miroel Silveira”, que analisou processos de censura prévia ao teatro até os anos 1980.
Para Martins, a chamada “censura togada”, aquela que “é exercida pelo Judiciário para supostamente preservar a imagem de quem se sente ofendido ou prejudicado por alguma obra”, tem impedido o pensamento crítico propiciado pela produção cultural.
O pesquisador cita como exemplos de censura a proibição do filme “”A Serbian Film – Terror sem Limites” em 2011 pela Justiça de Minas Gerais, assinada pelo juiz Ricardo Rabelo, da 3ª Vara Federal. O texto da ação argumentava que o filme desrespeitava o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por exibir cenas de sexo com menores.
No ano passado, o mesmo juiz decidiu que não havia mais razões “de natureza jurídica” para o veto. Quase um ano após ser proibido em território nacional, o longa foi liberado.
Segundo Raffaele Petrini, diretor da produtora Petrini Filmes, que detém o direito de exibições do longa, a proibição causou prejuízos na ordem de R$ 50 mil, considerando custos com ações judiciais. “E, depois que o filme foi liberado, os cinemas ficaram com medo de serem acionados judicialmente”, diz. “Em São Paulo, nenhuma sala, do circuito independente inclusive, teve interesse na exibição.”
Há outro fato “interessante” no caso do espetáculo “Edifício London”, prossegue Martins: a peça foi proibida às vésperas da estreia. “Esse procedimento era empregado na época da ditadura militar (1964-1985) para prejudicar as companhias e os artistas, que já haviam investido tempo e dinheiro na montagem”, conclui o professor.
Fonte: Folha de S. Paulo, 14 de março de 2013