Espaço público como um conjunto de formas em movimento
Tarcísio Meira foi um grande ator, indiscutivelmente. Ele teve uma carreira brilhante, com trabalhos de altíssimo nível no teatro, no cinema e na televisão. É incontestável que mereça todas as homenagens do mundo. O Projeto de Lei nº 535/2021, apresentado pelo vereador Thammy Miranda, que propõe a mudança do nome da Praça Franklin Roosevelt para Praça Tarcísio Meira, contudo, fica no meio do caminho e não consegue fazer nenhuma coisa nem outra: o tributo soa oportunista, parece forçado e não faz jus à eminente trajetória do artista, ao mesmo tempo em que não institui melhorias efetivas e concretas a quem vive ou frequenta o local.
Em primeiro lugar, o projeto já parte de premissas históricas e urbanísticas equivocadas. Em sua justificativa, afirma que o nome do logradouro foi uma “homenagem feita a um presidente americano, no auge da ditadura no nosso país, em 1970”. Essa informação é incorreta, como aponta o artigo 1o da Lei 3.924, de 12 de julho de 1950, que dispunha: “Fica denominada Praça Franklin Roosevelt a Praça delimitada pelas ruas da Consolação, Augusta, Martinho Prado e Olinda”. Comprova-se, portanto, que a nomeação foi muito antes da abjeta ditadura por qual o Brasil passou.
Nesse particular, inclusive, a SP Escola de Teatro, por exemplo, que fica nessa mesma praça, propôs desde a sua fundação, em 2010, novas terminologias justamente para evitar os vocabulários associados às tipologias militares: matriz em vez de grade curricular; componente em vez de disciplina, entre outras.
Todavia, mais do que uma questão de léxico, o perigo que a mudança de nome traz, nesse caso, tem a ver com a memória e seu apagamento. A Roosevelt representa a ágora da cidade de São Paulo, é o centro de todas as convergências culturais e geográficas – afinal, sob a praça fica a principal via de ligação das regiões leste e oeste, e bem próximo a conexão norte-sul.
Tome-se a visão de Milton Santos, para quem o espaço compõe-se como um conjunto de formas que contêm frações da sociedade em movimento, some-se à epistemologia de Gaston Bachelard, que teoriza sobre a importância dos signos e representações como constituição para o que compreendemos como espaço geográfico, algo que não é mecanicamente mensurável e está em fricção com as parcialidades da imaginação, e teremos o território como uma simbiose da memória, do espaço físico e dos cidadãos que ali atuam.
Vemos diariamente na Roosevelt a periferia tomando a praça de maneira legítima. Se o fenômeno dos coletivos teatrais foi o catalisador para que a região desabrochasse no início deste século, hoje temos skatistas e ciclistas, poesia, batalha de rimas, músicos, palhaços e acrobatas por todo canto. São jovens em busca de sociabilidade, de ocupar os espaços públicos de maneira autêntica. E os que vieram antes, as transexuais, os boêmios e intelectuais que por ali circularam, aqueles estudantes que frequentavam o Cine Bijou – e hoje se tornaram escritores e cineastas –, todas essas pessoas estão representadas dentro desse significante: Roosevelt. Essa alcunha já extrapolou há muito o mero nome de um ex-presidente americano, pensemos nesse epíteto como um som, uma alegoria, um ruído ancestral, o que quisermos, mas não vamos esmorecer essa rica história, porque é o que pode ocorrer como consequência dessa aparentemente inofensiva mudança de nome.
Se vamos reivindicar transformações, comecemos então pelo que não poderia ser. Uns poucos exemplos, para ilustrar esta afirmação: Peixoto Gomide assassinou a própria filha, a mudança do nome da rua que o celebra é muito mais justificável. Por sua vez, a polêmica estátua do Borba Gato poderia muito bem ser retirada do local e ter demovido seu status de homenagem histórica, indo para um museu – por sua relevância artística – para ser cuidada em outro contexto simbólico.
Aos nobres vereadores, deixo a sugestão de quem ali vive e trabalha. Se querem cuidar da Praça Roosevelt, vamos primeiro arborizar o espaço, cuidar de suas instalações, reforçar a limpeza e a segurança, vamos pensar nela como um patrimônio vivo e dinâmico, e não como uma homenagem anódina.
Não vamos virar as páginas antes que nós completemos essa história, para que ela possa ser ressignificada e mudada, porém não aniquilada. O que está sendo proposto é um apagamento histórico de um movimento importante da cidade de São Paulo, portanto sou contra, com todo respeito e amor pelo artista que foi Tarcísio Meira.