Segunda é o dia em que reato meu pacto com a vida. Não é um gesto solene, é quase um sussurro. Acordo sempre meia hora antes do que preciso. Não por heroísmo, mas por necessidade íntima. Preciso desses minutos em que ninguém ainda me exige, para existir em silêncio, sem tarefa, sem performance. Tomo esse tempo para conversar comigo, mentalmente. Organizo o dia, as ideias, o caos. Há algo de cartesiano nesse ritual, mas também algo de existencial. Penso, logo insisto.
Na noite anterior, o cuidado com os materiais de trabalho já foi feito. Arrumo minhas coisas como quem acende uma vela. Tenho sempre três turnos, e cada um exige um corpo diferente, um pensamento novo, um modo particular de escuta. Pela manhã, sou psicanalista. Entro no território do outro com a delicadeza de quem visita um país estrangeiro sem mapas. Às dez horas, o mundo corporativo me convoca. Preciso ser objetivo, rápido, preciso. E à noite, quando muitos encerram o expediente, eu recomeço: sou ator, dramaturgo, produtor.
Nos finais de semana, esse revezamento ganha ainda mais rostos. Viro curador, diretor, homem de cinema. Agora mesmo, estamos finalizando “A Arte de Encarar o Medo”, um longa filmado no ápice da pandemia, cruzando fronteiras que nem o vírus conseguiu fechar. Mais de dez países, corpos isolados e câmeras como companhias íntimas. Um filme difícil, urgente, um exercício de reinvenção em tempos de pavor.
Não sofro com essa multiplicidade. Ao contrário, sempre precisei viver entre mundos, como quem aprende a nadar em mar revolto. Penso agora em 1993, em Lisboa. Ensaiávamos A Filosofia na Alcova nas madrugadas frias de novembro e dezembro. Começávamos às quatro da manhã, porque o elenco trabalhava o dia inteiro. Por seis horas diárias, mergulhávamos no universo feroz e erótico de Sade. Aquele inverno português nos forjou como poucos. Daquelas noites saímos direto para palcos da Inglaterra, Escócia, Espanha, França, Ucrânia, Bolívia, Estados Unidos.
As grandes histórias sempre vieram vestidas de cansaço. Ou nasceram quando a sobrevivência parecia impossível. Não é romantização do sofrimento. É apenas constatação de que o impossível, às vezes, é só uma etapa do processo. O medo? Ele veio junto, claro. Tantas vezes caminhamos com ele, de mãos dadas, esperando que em algum momento o chão se firmasse. E, curiosamente, firmava.
Lembro de Kierkegaard, que dizia que a angústia é a vertigem da liberdade. Talvez seja isso. Viver entre mundos, virar-se em três turnos, criar sem rede de proteção, tudo isso é também uma forma de lançar-se ao abismo sabendo que, em queda, se aprende a voar.
Por isso sigo. Segunda-feira não é o recomeço de uma obrigação. É o ponto em que reafirmo meu desejo de existir em todos os papéis, sem amputar nenhum. Caminho, como sempre caminhei, para mais uma experiência. Porque batalhei muito para estar aqui. E não quero, nunca, fechar as portas das dificuldades. São elas que guardam as chaves dos mundos que ainda me esperam.
Boa semana a todas e todos.