PANORAMA | Por uma Psicanálise que Respira Outras Línguas

Ontem, ao chegar ao Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo, senti que alguma coisa no ar anunciava um deslocamento. Há dias em que o mundo parece se ajeitar um pouco diferente, como se aguardasse uma outra forma de escuta. E ainda na porta, antes mesmo de o seminário começar, fomos recebidos por algo que reconheço como cuidado. Jair de Souza Moreira Júnior e sua equipe nos acolhiam com uma delicadeza eficiente que não é comum. Há uma inteligência na forma como alguém recebe um evento. E eles souberam abrir o dia como quem abre um caminho.

Mas, para dizer a verdade, o seminário começou ainda na véspera, muito antes de qualquer mesa ou conferência. Na noite anterior, nosso grupo de WhatsApp parecia uma pequena festa. As meninas começaram a discutir as roupas que usariam, os vestidos recém-comprados especialmente para a ocasião. Era uma excitação bonita, quase adolescente, daquelas que só aparecem quando algo realmente importa. Eu, claro, acabei entrando no jogo. A primeira mensagem dizia que a Zizi – é assim que chamamos carinhosamente a Isildinha – iria de branco. No instante em que li, imaginei que todas apareceriam de branco também. Confessei que o máximo que eu conseguiria seria uma camisa branca e uma calça verde. Em poucos minutos, uma após a outra, começaram a descrições das cores, tecidos, estampas. Era uma alegria silenciosa, compartilhada ali naquela tela. Tão especial, tão rara, tão nossa.

O seminário “Por uma psicanálise decolonial – Tropeços e linhas de fuga” era mais do que uma programação. Era um gesto que vínhamos preparando em grupo, na Coletiva Psicanálise nas Brechas, da qual faço parte desde sua criação, em 2024. Somos psicanalistas de formações variadas, mas unidos pela recusa de uma psicanálise enclausurada nos moldes europeus. Desde novembro do ano passado, nossos encontros mensais, aos domingos, no Cine Satyros Bijou – Sala Patricia Pillar, têm sido laboratórios de pensamento vivo. O cinema é o ponto de partida, mas o que acontece depois é uma mistura bonita de escuta, afeto, crítica e desejo. Queremos uma psicanálise que não se assuste com o que o mundo revela. E que saiba ouvir o que a história tentou silenciar.

Quando abrimos o seminário, ficou claro. O mundo mudou e nós, psicanalistas, precisamos mudar com ele. Não por modismo, mas porque a suposta neutralidade eurocêntrica desmoronou. Pensadores e pensadoras como Neusa Santos Souza, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Rita Segato, Achille Mbembe, Frantz Fanon e, principalmente, Isildinha Baptista Nogueira, nossa mestra mais querida, vêm anunciando há anos que o inconsciente não é neutro. Ele tem cor, território, língua, gênero, ferida. E o Brasil, com toda sua brutalidade colonial e toda sua inventividade, talvez seja o país onde essas questões aparecem mais nuas.

A conferência de Isildinha foi um grande começo. Com sua lucidez afiada, ela nos lembrou que “não é a cor da pele, mas a cor do inconsciente que se revela em cada sessão”. Escutá-la sempre me dá a sensação de que estou diante de alguém que ilumina enquanto fala. Ela mostra como o racismo estrutura subjetividades e como isso precisa atravessar – e transformar – nossa prática clínica. Não dá para fingir que não vemos o que sempre esteve diante de nós.

O encontro seguinte, dedicado às “Saberes Indígenas e Práticas Micropolíticas do Cuidado”, colocou no centro da sala um outro modo de existir. Sassa Tupinambá, com seu trabalho enraizado nos saberes médicos dos povos indígenas, abriu para nós uma perspectiva de cuidado que simplesmente não cabe nas velhas categorias da clínica europeia. Corpo, terra e espírito não se separam. Saúde é relação, atravessamento, vínculo. E aprendi que meu território é o lugar onde meus pés ousam tocar. Suely Rolnik, que participaria conosco, tentava se conectar de Paris – uma viagem inesperada a levara para lá – mas problemas de sinal acabaram impedindo sua presença. Ainda assim, ela atravessou a mesa. Seus fios teóricos circulavam entre nós, como se respirássemos sua ausência. E talvez essa ausência tenha feito ainda mais sentido justamente porque ali estava um homem tupinambá, mais afinado com a natureza do que com as modernidades tecnológicas. Uma “cena falha”, quem sabe, mas uma “falha” necessária, que expôs o contraste exato entre dois mundos e evidenciou, com uma espécie de beleza acidental, o deslocamento que estávamos tentando pensar.

Quando chegou a hora do “Momento Coletiva”, senti algo especial. Estávamos ali: Ana Lucia Bastos, Bruna Elage, Isildinha Baptista Nogueira, Lilian Carbone, Luciana Chauí, Maria Vera Lucia Barbosa, Patricia Villas-Bôas, Roberta Kehdy e eu. Cada um com sua trajetória, seu corpo de história, sua maneira de praticar escuta. O inconsciente, dissemos, não mora apenas nos consultórios da Vila Nova Conceição ou nos de Higienópolis. Mora também nas favelas, nos quilombos, nas periferias, nos corpos que aprenderam a sobreviver. Houve riso, houve silêncio, houve aquele tipo de palavra que só aparece quando se está entre pessoas que confiam umas nas outras. E houve também corpo. Nós dançamos, fizemos ciranda, nos deixamos levar pelo ritmo. Cantamos junto com Lu Chauí e com o cientista social Pedro Javier Aguerre Hugues, que nos brindaram com canções delicadas. Voz, violão e um calor que parecia costurar tudo o que estávamos vivendo.

A última roda, “Encruzilhadas do Desejo”, foi intensa e necessária. Andrea Guerra, Alessandro Campos e Dedê Fatumma trouxeram gênero, erotismo e raça como camadas inseparáveis de vida e de clínica. O desejo apareceu como território político, como força que resiste, como criação possível. E entre uma fala e outra, a poesia de Paula Reis – mulher negra, periférica, educadora popular, atriz, poeta e artivista dos direitos humanos – costurava o dia. Seus versos eram pontes, respiros, lembranças de que não existe teoria sem corpo.

E, como um seminário que se sabe vivo, tivemos mais do que mesas. Teve música. Teve gente desenhando. Teve quem escrevesse no canto da sala. Teve dança, poesia, pausa. Teve ciranda com Lilian de Lima. Teve o inesperado, aquilo que torna um encontro verdadeiramente encontro.

A ausência de Suely, mesmo involuntária, apenas reafirmou algo que já sabemos. A psicanálise decolonial precisa saber lidar com o imprevisto, com o tropeço. Porque é dele que nascem muitas linhas de fuga.

Quando o dia terminou e as pessoas foram se despedindo, senti uma espécie de deslocamento interno. Uma pequena fresta aberta, como se eu também tivesse descido um degrau, perdido uma certeza, ganhado uma escuta. Talvez essa seja a promessa de uma psicanálise decolonial. Não oferecer respostas prontas, mas criar modos de caminhar. Habitar as ruínas do colonialismo sem negar a dor, mas sem abandonar a potência.

Entre tudo o que vivi ontem, ficou uma sensação bonita de que estamos reinventando algo juntos. E que, se o inconsciente tem cor, cheiro, língua e território, então a psicanálise precisa reaprender a se mover.

E nós, que vivemos das brechas, seguimos respondendo com alegria. Viva este lugar onde escolho estar, este território que me acolhe e me desafia. As brechas.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1987

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