OPINIÃO | Salamaleques: o desejo como campo de batalha

Caminhar pelas Satyrianas é sempre uma aventura sensorial e afetiva. Este ano, são quase 500 espetáculos atravessando os quatro dias do evento. Uma loucura organizada, um território onde milhares de artistas, vindos de 21 estados brasileiros, fazem pulsar suas criações como quem ilumina a cidade por dentro. No meio desse turbilhão generoso, tenho encontrado obras que me interrompem, me deslocam e me devolvem perguntas. “Salamaleques” foi uma delas.

Entrei na sala do Espaço Parlapatões com a palavra “salamaleques” ainda vibrando na língua, recém-consultada no Google. Entre a saudação muçulmana – a paz esteja convosco – e os cumprimentos cheios de afetação, havia uma terceira possibilidade, silenciosa e não escrita. A de que o teatro nos ofereceria exatamente essa oscilação entre reverência e confronto, entre delicadeza e brutalidade, entre desejo e recusa. E ofereceu.

“Salamaleques” nasceu de um experimento da SP Escola de Teatro, no qual as ideias de Wisnik sobre futebol e Brasil serviram de motor para que nossos estudantes criassem um pequeno terremoto cênico. Aqui, três atores ocupam o vestiário de um clube de várzea como se fosse um ringue secreto, onde o corpo fala antes da palavra, e o cheiro da água, do sabão e da testosterona cria uma névoa espessa, quase palpável.

No centro do tablado, Thiago Ribeiro – ator incrível, sempre se jogando no palco sem rede de proteção –, nos conduz pela narrativa com firmeza, nos introduzindo ao que veremos, enquanto os dois primos – interpretados Danilo Narciso e Warner Borges, atores de entrega rara – acendem o pavio de um erotismo que não se contém. Há algo de profundamente honesto nessa tensão. Os gestos interrompidos, os olhares demorados, a respiração que prende e libera como quem pede permissão. O público, cúmplice, torce – torce muito! – para que aquilo tudo finalmente transborde.

Mas o que move a peça não é o encontro que quase acontece, e sim o que impede que aconteça. Entre as personagens de Danilo e Warner, a atração é evidente, quase luminosa. No entanto, as fronteiras do machismo, essas muralhas tácitas que o futebol de várzea conhece tão bem, atravessam cada gesto que poderia ser afeto. A trama se incendeia quando um dos primos anuncia seu desejo de abandonar o futebol para ser ator. Eis o tabu dentro do tabu. Não basta gostar de homens. É preciso também desafiar o sagrado território masculino do gramado.

A psicanálise talvez diria que o vestiário é o primeiro grande palco de iniciação masculina, onde os meninos aprendem, cedo demais, que ternura é perigo e vulnerabilidade é fraqueza. Ali, o desejo precisa se disfarçar para sobreviver. E o que vemos em “Salamaleques” é justamente esse jogo de defesas. A sedução que avança e recua, o impulso que se manifesta só para imediatamente se esconder, o afeto que só pode existir no modo clandestino. O “quase” que atravessa a peça é também o “quase” que tantos homens carregam pela vida inteira. Há, ali, quase um beijo, quase uma confissão, quase um gesto que poderia mudar tudo. Mas o “quase” é sempre um “quase”, nunca um fato consumado. Assim, resta essa impossibilidade de assumir, diante do outro e de si, aquilo que verdadeiramente querem.

O texto, de Warner Borges, é muito bom. E poderoso! Tem o vigor da juventude que ousa dizer o indizível e tocar o intocado. Os intérpretes sustentam essa força com presença e verdade, construindo um trio que respira junto, mesmo quando silencia. A química entre eles é o próprio motor da encenação.

A direção, também de Warner,  embora eficaz, ainda pode aparar excessos. O dispositivo cênico do chuveiro, tão promissor na ideia, carece de maior radicalidade. Ou assume a nudez do espaço e dos corpos, ou a reinventa com acabamento que torne aquele ambiente tão real quanto simbólico. Talvez habite aí a única hesitação da direção.

Mas isso são detalhes de quem vê com olhos apaixonados. Porque o que importa é outra coisa.

“Salamaleques” funciona. E funciona porque entende que o vestiário, esse lugar de ritos masculinos, de silêncios orgulhosos e violências miúdas, é também um território de desejo. E que o desejo, quando não pode circular, vira ferida.

Ao final, o que a peça nos devolve não seja um beijo. É uma pergunta. Daquelas que ficam ecoando nos azulejos frios da memória. Quantas vidas seriam diferentes se o mundo permitisse que dois homens simplesmente se amassem?

Saio da sala pensando nisso. Sem salamaleques. Com verdade.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1976

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