Sabe aquele clássico que você jura que leu no colégio, mas na verdade só folheou o resumo? Pois bem, The Yellow Wallpaper, de Charlotte Perkins Gilman, é desses. Publicado em 1892, virou bandeira do feminismo ao expor uma jovem trancafiada pelo marido num quarto “para repousar os nervos” — prática médica tão absurda quanto servir água com açúcar pra queimadura. E não é que, em 2025, o texto continua fazendo sentido?
A montagem O Papel de Parede Amarelo e Eu pega a história, sacode, coloca na centrífuga e devolve tudo quentinho pro nosso momento político, onde ainda tem muita gente querendo regular corpo alheio e “diagnosticar” mulher que discorda. É o tipo de espetáculo que chega na hora exata: não porque a pauta seja nova, mas porque o retrocesso adora reaparecer de terno passado-a-ferro.
Gabriela Duarte segura a bronca solo com uma performance que mistura stand-up de sobrevivente e tour guiado pelo manicômio patriarcal. Ela faz cara doce, joga sarcasmo fino e, quando menos se espera, estoura a bolha da sanidade num grito que arrepia o cílio postiço da primeira fila. E ainda encaixa pitacos pessoais sobre maternidade, etarismo e haters de rede social — tudo sem parecer palestra de autoajuda. É muito bom ver uma atriz popular usar o próprio alcance pra perguntar: “Ei, quem mais aí está arrancando papel de parede imaginário por dentro?”
Alessandra Maestrini e Denise Stoklos assinam uma direção de bisturi afiado: nada sobra, nada falta, e cada incisão faz o espetáculo pulsar como se tivesse um metrônomo escondido atrás do papel de parede. O cenário de Márcia Moon é um retângulo cheio de camadas que respira — cada lâmina translúcida revela novas manchas amarelas, quase um teste de Rorschach para quem tem ansiedade decorativa. A luz de Cesar Pivetti corta o espaço como scan de aeroporto: ninguém sai ileso. E o figurino vermelho sangue de Leandro Castro mancha de amarelo, às vezes, como se fosse absorvendo a loucura feito papel mata-borrão. Wilson Eliodorio, responsável pelo visagismo da montagem, completa o pacote deixando Gabriela impecável demais — o tipo de beleza que só evidencia o curto-circuito por trás dos olhos.
O resultado é um soco elegante: dura cerca de uma hora, mas você sai do teatro querendo pleitear habeas corpus pra todas as mulheres que ainda vivem em quartos alheios — literais ou não. Numa temporada em que discursos sobre liberdade feminina viram alvo fácil de meme rancoroso, a peça chega como recado urgente (e bem-humorado) de que a parede ainda está lá, mas a gente já aprendeu a descascá-la com unha afiada e riso debochado.
O Papel de Parede Amarelo e Eu emerge como um espetáculo que precisa ser visto. Não é apenas uma releitura relevante de um texto feminista seminal; é uma experiência sensorial que faz o público sentir na pele a coação invisível da norma. Ao final, quando Gabriela Duarte arranca a última lasca imaginária do papel e olha para a plateia, a pergunta que paira no ar não é “quem foi trancada?”, mas “quem continua trancando quem?”.
“O Papel de Parede Amarelo e Eu”
Teatro Estúdio, São Paulo