TELEVISÃO | O Brasil que matou Odete Roitman

O Brasil é uma novela que não termina porque o inconsciente nacional não quer o fim. O brasileiro, herdeiro do melodrama, precisa do enredo em aberto, do gancho, do próximo capítulo que promete revelar tudo, mas nunca revela nada. Somos um povo que vive de to be continued.

E no centro dessa repetição compulsiva está ela, Odete Roitman, a mulher que morreu e fez o país parar. Mas, sejamos honestos, ninguém queria justiça. Queríamos apenas a catarse de ver a elite alvejada no horário nobre. Odete morre por excesso de metáfora. Morre para que o Brasil possa continuar projetando seu ódio de classe com elegância estética e trilha sonora de suspense.

Quem matou Odete Roitman?

A pergunta que parou o Brasil em 1989 ainda ecoa como um mantra tropical. Era uma dúvida que mobilizava o país inteiro. Do açougue ao Planalto, as pessoas dormiam pensando em Odete e acordavam com desconfianças novas. Foi a primeira vez que o brasileiro se sentiu, coletivamente, dentro de um grande suspense existencial. Freud teria adorado. Uma nação inteira em transferência com uma morta.

Se Freud tivesse assistido à cena, talvez dissesse que o assassinato de Odete foi um acting out coletivo. O retorno do recalcado de um país que sempre quis matar o seu próprio espelho. Esse reflexo arrogante, branco, mandão, cosmopolita, que despreza o subúrbio e a periferia.

Lacan, por sua vez, chamaria de ponto de basta, o instante em que o gozo simbólico se materializa em bala e que amarra, ao mesmo tempo, um significante e um significado. Afinal, o inconsciente adora uma arma de fogo.

Hoje, mais de trinta anos depois da primeira versão da novela, seguimos procurando o assassino. Mas com métodos atualizados. Em vez de bilhetes anônimos e boatos de esquina, temos threads no X, reels com teorias no Instagram e podcasts true crime sobre a “culpabilidade simbólica de Leila”. No Brasil de 2025, todo mundo é um pouco perito criminal e um pouco psicanalista de feed. E advogados também.

Afinal, se pensarmos bem, Odete Roitman é a própria metáfora do Brasil. Uma elite autoritária, fria, que acha que o país é sua suíte no Copacabana Palace e sua morte é o sintoma. A pulsão de destruição, o gozo com o colapso, o prazer mórbido em ver o sistema ruir, desde que o sangue não respingue na gente.

No fundo, talvez a verdadeira pergunta não seja “quem matou”, mas “por que seguimos matando”. Por que precisamos de uma Odete simbólica por semana, um vilão público, um culpado provisório, alguém em quem projetar nossa raiva e frustração? A novela acaba, mas a cena se repete nas redes, nos grupos de família, nas câmaras e plenários.

Sabemos, Odete não morreu de fato. Reencarnou em cada coach de finanças, em cada colunista indignado, em cada influenciador que acorda às cinco da manhã para ensinar “como pensar como um milionário”. Está viva nos conselhos do LinkedIn, nos editoriais sobre “meritocracia” e nas entrevistas com bilionários que juram que vieram do nada, esquecendo que o nada deles sempre teve piscina.

Mas o mais curioso é que, passadas tantas décadas, a pergunta continua sem resposta. Ou com respostas demais. Talvez não tenham puxado o gatilho. Talvez tenha sido tão somente uma conjuntura: o inconsciente coletivo brasileiro. Ou o preço da picanha. Quem sabe o AI-5. A transição democrática mal resolvida. O complexo de vira-lata. O golpe de 2016. O aplicativo de delivery. A polarização. A insônia.

O crime, afinal, foi perfeito. Todo mundo tem um motivo. E ninguém se sente culpado. Se houvesse uma CPI da Odete Roitman hoje, seria transmitida ao vivo, com reactsmemes e especialistas comentando em lives.

E nós, seus assassinos e herdeiros, seguimos apertando o refresh, esperando o próximo capítulo, sem perceber que o Brasil é, desde sempre, uma novela sem fim. E com roteiro de inconsciente.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1938

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