Incrível, mas tanto o teatro como a psicanálise não têm medo de tocar naquilo que não se pode dizer. E A Médica, texto de Robert Icke sobre a matriz de Schnitzler, de 1912, dirigido por Nelson Baskerville no Auditório do MASP, é exatamente isso: um dedo no ponto onde a ferida insiste em não cicatrizar. Em tempos de julgamentos sumários nas redes sociais, A Médica nos lembra que a ética não cabe em hashtags.
No centro da peça, a Dra. Ruth Wolff, vivida por Clara Carvalho, encarna a tensão entre dois regimes de saber e de crença: ciência e religião. Mas há, sob a superfície desse embate, outra camada, a que interessa, de fato, à psicanálise: a tentativa desesperada de preservar a ilusão de neutralidade, de controle, de pureza. Como se fosse possível permanecer fora do conflito, fora do desejo.
A recusa da médica em permitir ao padre a extrema unção para a jovem em agonia é menos um gesto de ciência contra fé do que um ato falho contra si mesma. Ali, Ruth Wolff não está apenas defendendo a razão. Está defendendo a sua própria ferida narcísica. A crença de que pode, ela, ser toda razão. Mas não se é só razão, nunca se é só um lado. O que transborda – e aqui o espetáculo acerta ao mostrar isso sem concessões – é o que nos escapa: a pulsão de morte que ameaça a ordem, o ódio que se camufla de moral, o desejo que se disfarça de ética.
A montagem de Baskerville mergulha nesse abismo com coragem. Os corpos do elenco, a começar pelo de Clara, entregam-se a uma velocidade que parece querer se livrar de si mesma – como quem tenta escapar do próprio sintoma correndo mais rápido que ele. O cenário em movimento, de Marisa Bentivegna, e o videomapping de André Grynwask e Pri Argoud inundam o palco com imagens críticas e caóticas, em perfeita sincronia com o ritmo da encenação. Não apenas ilustram o conflito. Eles o encarnam. O cenário se movimenta junto com os atores, em uma dança de desestabilização constante, nos lembrando que vivemos cercados de imagens demais, informações demais, certezas demais.
Um dos méritos mais finos da encenação está na dissonância intencional entre aparência e identidade. Adriana Lessa, Anderson Muller, Cella Azevedo, Cesar Mello, Chris Couto, Isabella Lemos, Kiko Marques, Luisa Silva, Sergio Mastropasqua e Thalles Cabral, em papéis que subvertem o que se espera de gênero, raça ou idade, nos devolvem ao estranhamento primordial. Esse embaralhamento, sustentado pelo conjunto do elenco, transforma o palco num espelho estilhaçado, onde cada fragmento reflete algo de nós. Ninguém é aquilo que parece. E se a psicanálise nos ensinou algo, foi que somos sempre também o que negamos ser.
Mas uma das coisas que mais gosto nas peças de Baskerville é que ele sempre pinça uma canção do “nosso tempo”. Eu e ele temos praticamente a mesma idade, então nossas referências musicais são bastante próximas. Um dos momentos mais lindos de Luis Antonio – Gabriela era quando o elenco cantava Your Song, de Elton John. Agora, em A Médica, é Thalles Cabral – como eu adoro o trabalho desse menino! – quem entoa Barry Manilow e sua deliciosa e saudosa Ready to Take a Chance Again. Aliás, um dos grandes momentos da encenação.
Ao final, o público não assiste apenas a um embate entre ciência e fé, mas a um espetáculo sobre como cada um lida com o próprio inconsciente coletivo, projetado no outro. A Médica nos deixa diante daquilo que nunca conseguimos domesticar: a verdade de que, por baixo das crenças, há sempre um sujeito dividido, tateando no escuro por um sentido que nunca se alcança por inteiro.
Clara Carvalho, em estado de graça e de queda ao mesmo tempo, nos mostra que ser médico – ou humano – talvez seja isso: fracassar de modo digno diante do impossível.
E a peça, como a psicanálise, nos convida a sustentar a pergunta, em vez de apressar uma resposta. A cada cena, ela nos lembra que não há solução definitiva para os impasses humanos. Apenas o trabalho paciente de habitá-los. Convida-nos a suportar o desconforto de não saber, a escutar aquilo que se esconde por trás das certezas, a acolher as contradições que nos constituem. Pois tanto no divã quanto no palco, é no vazio entre a pergunta e a resposta que mora a possibilidade de transformação. E é nesse intervalo – entre o saber e a dúvida, entre o gesto e o silêncio – que o teatro, como a análise, nos devolve a chance de nos reinventarmos.
A Médica
Auditório do MASP
Foto: Foto: Ronaldo Gutierrez