Existem espetáculos que nos lembram por que o teatro é, talvez, a mais humana de todas as artes. Não Me Entrego, Não é um desses raríssimos momentos. Mais que uma peça, o que se vê no palco do Teatro Raul Cortez é um acontecimento que se estende muito além da cena.
Othon Bastos, prestes a completar 92 anos, percorre quase duas horas de espetáculo atravessando a própria vida — sem rede de proteção, sem truque, sem concessão. É a inteireza do gesto, do corpo, da memória. Um verdadeiro milagre cênico diante dos nossos olhos.
O autor Flavio Marinho, no programa da peça, escreve o que muitos de nós já sabíamos — mas que, dito assim, ganha outra força: Othon Bastos é o maior ator vivo do teatro brasileiro. Não é necessário nenhum esforço retórico para concordar. Basta estar ali. Basta vê-lo.
Othon não representa: ele é. Não está em cena para repetir um passado glorioso — está para reinventá-lo. Não está para ser homenageado — está para nos dar mais uma aula, a mais desafiadora de todas: a aula da permanência.
E isso, claro, não é um detalhe. Não porque o espetáculo se apoie nessa ideia, mas porque o que ele faz ali é da ordem do inacreditável. E, com a serenidade de quem esteve lá, sentado naquela plateia do Sesc 14 Bis, testemunhei algo que só o teatro é capaz de produzir: a epifania da presença.
Não Me Entrego, Não é uma viagem no tempo — mas não no sentido nostálgico ou decorativo. A viagem aqui é de carne, de pensamento, de presença. Othon percorre sua trajetória — são 73 anos de ofício! — com a generosidade dos mestres e a ousadia dos iniciantes.
A atriz Juliana Medella o acompanha com firmeza e sensibilidade, sabendo ocupar o lugar mais difícil em cena: o de quem entende que o brilho do outro é também o seu. Está onde deve estar — com precisão, elegância e delicadeza. Virtudes raras.
Não há em Não Me Entrego, Não a arquitetura das grandes superproduções. Não precisa. O palco é despojado, o jogo é direto. Porque o teatro, quando atinge esse grau de essencialidade, dispensa adereços. Tudo está em Othon: sua voz inconfundível, seu gesto imenso, seu olhar que atravessa décadas de personagens, palcos e plateias.
Assistir a Othon Bastos hoje não é apenas um privilégio estético — é um exercício de humildade, um convite à reflexão sobre o tempo, a arte e o compromisso com o que se faz. Não Me Entrego, Não é teatro em estado absoluto. Quem ama a arte — não apenas a dramática, mas qualquer forma de arte — deveria estar lá.
Porque esta peça é muito mais do que um espetáculo sobre memórias. É uma grande lição de teatro — daquelas que não cabem em livros, nem em escolas. Porque, neste caso, não se trata de técnica. Trata-se de alma. Trata-se de entrega radical a uma arte que se desfaz no instante em que acontece — e por isso mesmo nos atravessa com tanta força.
Porque, no fim, o que Othon nos ensina é simples e grandioso: o artista não se aposenta, não se entrega, não se rende. Enquanto houver palco, haverá vida.
Talvez, no fundo, Não Me Entrego, Não nem seja sobre o passado. Nem sobre o teatro, exatamente. É sobre o que nos sustenta quando tudo parece desabar. Sobre o que nos faz seguir — mesmo quando o corpo já não é o mesmo, mesmo quando o tempo já levou quase tudo.
Não Me Entrego, Não
com: Othon Bastos
Texto e direção: Flavio Marinho
Diretora assistente e participação especial: Juliana Medella
Teatro Raul Cortez – Sesc 14 Bis
Foto: Divulgação/Andy Santana/BrazilNews