Com algum atraso, só hoje assisti a “Malu”, o filme de Pedro Freire, e saí da sessão com a sensação de quem acabou de atravessar uma tempestade de afetos. Daquelas que não dão aviso prévio, mas que chegam com força, derrubando todas as defesas emocionais possíveis. Porque “Malu” não é só um filme. É um reencontro com uma ausência. Um abraço que acontece no tempo errado, mas ainda assim chega.
O filme é uma grande homenagem à atriz Malu Rocha, mãe do diretor. E talvez seja impossível, para quem conheceu Malu pessoalmente, assistir a essa obra sem que um turbilhão de lembranças se instale. Eu e Malu estivemos juntos em dois momentos muito simbólicos da minha trajetória, curiosamente, ambos marcados por chegadas a São Paulo.
A primeira vez foi em 1989, quando fundamos Os Satyros. Estávamos começando, cheios de incertezas e de uma coragem que hoje me parece até irresponsável. Malu estava por perto, com sua energia vibrante, aquela mistura de intensidade e doçura que só ela tinha. A segunda vez foi em 2001, quando retornávamos à cidade e criávamos o Espaço dos Satyros na Praça Roosevelt, outro momento de fundação, outro salto no escuro. Mais uma vez, lá estava ela. Como uma dessas figuras que parecem surgir sempre que a vida nos convida a um recomeço.
Malu era uma explosão. Inteligente, sensível, sempre com uma presença arrebatadora. No convívio social, era deliciosamente incrível. Sabia fazer da conversa uma festa, do encontro um evento. E linda. Muito linda. Daquelas belezas que não pedem licença, que simplesmente ocupam o espaço.
Guardo na memória, com nitidez quase fotográfica, o dia em que a vi no palco do Teatro do Bixiga, em 1989, na peça “A Mancha Roxa”, de Plínio Marcos, dirigida por Roberto Lage. Contracenava com sua filha, Isadora Ferrite. Um grande trabalho das duas. Uma entrega de cena daquelas que marcam quem assiste.
Ver agora o filme“Malu”é também revisitar tudo isso. Pedro Freire construiu uma ode à relação de um filho com sua mãe, mas também um retrato honesto, cru e imensamente afetuoso de quem foi Malu Rocha. O filme transborda poesia, mas nunca escorrega para o sentimentalismo fácil. Não há romantização. Há vida. Vida em excesso, vida em descontrole, vida naquilo que ela tem de mais brutal e de mais bonito: a impermanência.
O trabalho das atrizes em “Malu” é de uma precisão e delicadeza raras. Yara de Novaes, Juliana Carneiro da Cunha e Carol Duarte constroem, juntas, um desenho emocional que atravessa a tela com a força de quem conhece profundamente as sutilezas do humano. Yara, em especial, impressiona. Em muitos momentos, chega a ficar muito parecida com a própria Malu Rocha, não exatamente nos traços, mas na energia, na respiração, no modo como ocupa os espaços. Juliana e Carol, com percursos e registros diferentes, entregam atuações que ampliam o campo de afeto do filme — são três camadas de um mesmo amor, de uma mesma ausência. Um trio de mulheres absolutamente entregues, que transformam a trama em carne viva, emoção e presença
O roteiro, a direção, a fotografia, tudo parece conspirar para criar um espaço de memória e de presença. O espectador vai sendo tragado para dentro de uma história que é ao mesmo tempo íntima e universal. Cada silêncio diz muito. Cada gesto, cada crise, cada reconciliação improvisada dentro daquela narrativa fala sobre o que é amar alguém e, mais ainda, o que é sobreviver a essa pessoa quando ela se vai.
Malu é também um filme sobre o ofício do ator. Sobre a exposição, a entrega e o preço que se paga por uma vida dedicada à arte. E nesse aspecto, é impossível não se reconhecer, ali na tela, ecos das nossas histórias e das de tantos artistas que transitam entre o palco, a televisão, os bastidores, sempre buscando um lugar onde a própria existência faça algum sentido.
Para mim, “Malu” é, sem exagero, um dos grandes filmes nacionais de sempre. E o melhor filme de 2024. Um filme que vai muito além da biografia, porque, no fim, ele fala de algo que nos atravessa a todos: a tentativa desesperada, mas sempre incrível, de manter vivo aquilo que a morte insiste em levar.
Pedro Freire não fez só um filme sobre a mãe. Fez um filme sobre todos nós. Sobre tudo que amamos. Sobre tudo que, um dia, inevitavelmente, vamos perder.