O disco “Ironia”, disponível em todas as plataformas digitais, abre caminho como quem desembarca, sem tropeço, numa terra repleta de gigantes: o território labiríntico da música popular brasileira, com seus cânones, sotaques e ritos de passagem. Ainda muito jovem, Augusto Cerqueira chega de Paranaguá carregando a brisa do litoral paranaense e um timbre que se acomoda com elegância em gêneros tão díspares quanto samba, pop, e forró.
Essa versatilidade nunca soa oportunista. Ao contrário, revela um intérprete atento ao que cada canção pede — às vezes corpo inteiro, às vezes quase sussurro — e que recusa a fronteira estreita que costuma separar tradição e invenção.
O maior cúmplice dessa travessia é o produtor Daniel Almeida, responsável por metade das faixas do álbum. Em “Lembrança”, “Samba Pra Mais Tarde” e “Temporal” ele arma uma cozinha enxuta, bordada por violões cristalinos, pandeiros de volume comedido e linhas de baixo que embrulham a voz de Augusto num balanço discreto, porém irresistível. As três canções, todas de autoria do próprio Daniel, formam o coração pulsante do disco, elevando-o acima de um mero exercício de estreia e sugerindo longevidade artística para ambos.
Mas “Ironia” ainda guarda descobertas: Rodrigo Maranhão, compositor com jeito de artesão meticuloso, entrega duas pérolas, “Milonga” e a quase lisboeta “Quase um Fado”. Sob o arco desses temas — um trotando pelas planícies do Sul, o outro carregado de saudade — Augusto parece encontrar a própria sala de estar vocal: há firmeza, mas também uma insegurança bem-vinda, como se estivesse aprendendo ao vivo, diante de nós, a modular ausências.
As regravações, por sua vez, expõem grandeza e inconstância em iguais medidas. “Porto Solidão” guarda potencial oceânico para seu timbre agudo, mas o arranjo contido e um andamento excessivamente compassado reduzem o impacto da canção. “Brigas” sofre do efeito oposto: peca nas firulas vocais demasiadamente inflamadas. Já “Meu Dia Vem Aí”, de Riachão, encontra Augusto solto como num terreiro iluminado: o samba corre fácil, o pandeiro responde e a faixa se torna fecho simbólico de esperança, sobretudo após a ácida “Falem de Mim”, que ironiza haters digitais com leveza de sorriso torto.
No todo, “Ironia” anuncia um artista que compreendeu algo precioso sobre a MPB. Neste país de cartografias caprichosas, não basta dominar a língua, é preciso inventar sotaques próprios.
Entre a elegância percussiva de Daniel Almeida, a poesia transatlântica de Rodrigo Maranhão e a coragem de enfrentar clássicos à luz do presente, Augusto Cerqueira ergue um disco de estreia com muitos acertos, apontando caminhos para além do mero virtuosismo vocal. Se a ironia brasileira costuma ser arma de defesa, aqui ela soa como convite: desfazer rótulos, reordenar influências, cantar um país que só cabe inteiro quando cabe em vozes novas.