O remake de Vale Tudo aterrissa com tudo em cima: roteiro afiado, elenco luminoso, direção segura. Num primeiro olhar, a engrenagem gira sem rangidos – perfeita para conquistar um público que, em 2025, consome novela como quem desliza o dedo na tela do celular.
Mas basta aproximar a lupa para perceber que algumas dessas engrenagens ainda rodam em 1989. É nos detalhes, justamente onde a trama faz questão de ser “realista”, que o anacronismo desponta: a despedida dramática no Galeão entre Solange (Alice Wegmann) e Afonso (Humberto Carrão) ignora o Wi-Fi a bordo e a videochamada irrestrita – doze horas de voo não bastam para tornar um romance inviável na era do “manda localização”. Principalmente porque dinheiro ali não é um problema.
A cena se repete noutras miudezas. Odete Roitman (Débora Bloch), agora fina aristocrata, corta o filé trocando garfo e faca de mãos – erro que qualquer mordomo europeu corrigiria num piscar. No tabuleiro de Heleninha (Paolla Oliveira) contra Maria de Fátima (Bella Campos), peças de xadrez aparecem embaralhadas, e a agência Tomorrow ostenta estética de CD-ROM multimídia dos anos noventa, enquanto as redes sociais de Maria de Fátima parecem criadas num tutorial de 2010.
Nada disso seria problema se a novela abraçasse a licença poética. Mas Vale Tudo – filho primogênito do realismo de Gilberto Braga – exige verossimilhança onde ela escorrega. Em 1989, descobrir que ricos driblavam o Estado era trama de suspense; em 2025, é newsletter diária. Reencenar aquela perplexidade sem atualizar o risco entrega nostalgia onde caberia farpa.
Talvez a resposta esteja no ritmo que o streaming ensinou: condensar. Histórias potentes sobrevivem sem maratona de duzentos capítulos. Ao invés de empilhar cenas que o tempo já carimbou como anacrônicas, a Globo poderia arriscar temporadas enxutas, conectadas ao noticiário de hoje – não ao VHS que emperrou no rebobinador. Porque, quando a pergunta “quem matou Odete Roitman?” volta a ecoar, a suspeita recai mesmo é sobre o anacronismo.
Ainda assim, vale – perdoe o trocadilho – sintonizar no remake, nem que seja para ver Alexandre Nero e Karine Teles brilharem e revisitar a memória afetiva que todo brasileiro guarda da trama original. Basta ajustar nosso relógio interno: enquanto os personagens se despedem como se cruzassem oceanos intransponíveis, o público embarca no futuro e percebe, rindo de leve, que a ponte aérea continua logo ali – a um clique de distância.