O SONHO DESTA NOITE | O País Onde Eu Morro Repetidas Vezes

Sonhei de novo com aquela cidade estrangeira. Não sei seu nome, sua geografia ou idioma. Mas ela já me conhece. Frequento suas ruas há anos. Ou melhor, ela me frequenta. Sempre como cenário de uma ausência que me escapa. Um lugar feito de longas distâncias, onde os deslocamentos parecem intermináveis e onde, a cada esquina, sinto que estou sempre um pouco atrasado para aquilo que deveria ser minha vida.

Na cidade do sonho, sou muitos ao mesmo tempo. Ator às vésperas de entrar em cena. Diretor executivo, preocupado com o funcionamento de alguma instituição que, embora sem nome, carrega uma urgência de sobrevivência. Há sempre uma tensão entre os papéis: o artista que teme o esquecimento do texto e o gestor que tenta impedir o colapso da estrutura.

O camarim desta vez era uma grande casa, como se a memória tivesse decidido fazer o papel de cenógrafa. E nesta casa mora um antigo amor, recém-chegado, como quem volta de um exílio pessoal para ocupar um espaço que nunca lhe foi exatamente confortável. A casa, como todos os bons símbolos oníricos, é também um abrigo de afetos incompletos. Um lugar onde o passado não se despediu.

E então acontece o inesperado. Uma espécie de procissão de visitantes chega. Pessoas bonitas, que caminham entre os quartos como se soubessem de uma coreografia secreta. Fazem sexo oral nas pessoas — inclusive em mim. Não há vergonha, nem culpa. Só desejo. Um desejo solto, rápido, inconcluso. Eu me animo. Quero mais. Mas a pessoa que me toca, que me desperta, desaparece tão rapidamente quanto surgiu. Corro atrás, atravesso corredores, abro portas, mas só encontro o eco. E alguns amigos, colegas de cena, e até aquele antigo amor, que também viveram o mesmo delírio breve e ficaram igualmente com as mãos vazias.

Enquanto isso, no palco, a peça acontece. A peça que um dia foi minha, mas que agora me escapa. Vou interpretar um personagem antigo, que um dia habitei com segurança, mas cujo texto não sei mais. E ali, diante da urgência de entrar em cena, sou atravessado pelo pânico mais íntimo de qualquer ator: o de esquecer as falas, de ficar mudo no meio da luz.

Tento negociar com o executivo em mim. Preciso resolver. Tomar decisões. Criar estratégias para que o espetáculo continue. Mas o pavor cresce, como uma sombra que vai cobrindo tudo. É então que vem o golpe final: a pessoa com quem dividi muitos anos de vida termina o relacionamento comigo. Ali. Naquele instante de absoluta vulnerabilidade.

E o sonho vira outra coisa. Passa a ser um roteiro de morte. Sinto o corpo esvaziar, o ar faltar, o chão desaparecer. Não é uma metáfora, é físico. Estou morrendo. Literalmente. A angústia toma uma forma quase tátil, um aperto no peito que não alivia. Saio correndo, entro num ônibus, como se fosse possível adiar o fim pegando outro caminho. Mas o trajeto é o da despedida. Dentro do ônibus, enquanto vejo rostos de desconhecidos que me acompanham sem entender meu desespero, começo a morrer. Vou me esvaindo, enquanto memórias aleatórias me visitam: uma velha professora, que talvez tenha sido uma das primeiras a me olhar com ternura, e antigos amores, esses que o inconsciente convoca nas horas finais, como se fossem os últimos capítulos de um livro que ninguém quer fechar.

Talvez Freud dissesse que sonhei com uma encenação grandiosa da angústia de castração. Da perda irreparável. Do desamparo primordial. A cidade estrangeira é, como tantas vezes na clínica, o próprio inconsciente: vasto, estranho, sem localização fixa. A distância entre os lugares é a distância entre o desejo e sua realização. Entre aquilo que busco e aquilo que jamais alcanço.

O sexo oral coletivo, que surge como alívio e logo vira ausência, talvez seja o breve instante de satisfação pulsional, seguido do retorno da falta. Como se o gozo viesse só para reafirmar que ele é, por estrutura, insustentável.

O palco e o texto esquecido talvez falem da minha eterna tentativa de ser para o outro. De corresponder. De performar papéis que muitas vezes já não fazem mais sentido, mas que continuo tentando representar. A angústia de não saber o texto é, talvez, a mais pura tradução do medo de não ter lugar. De ser visto como fraude. De, no fundo, não saber mais quem sou dentro de tantos personagens.

A morte… ah, a morte. Ela parece o desfecho inevitável quando todas as defesas falham. Quando nem o ator, nem o executivo, nem o amante conseguem mais sustentar a cena. Quando o eu simbólico colapsa. Mas talvez haja um recado delicado nesse fim tão dramático. É preciso morrer um pouco para continuar. Morrer de certas versões de si mesmo. Morrer de amores que já não cabem. Morrer de textos decorados que já não dizem nada.

A lembrança da professora, dos antigos amores, talvez seja o inconsciente dizendo que, mesmo na hora da dissolução, há vínculos que permanecem como vestígios de vida. Como se, na beira do abismo, o que restasse fosse aquilo que realmente importou.

Acordei com o coração acelerado. Um pouco exausto. Mas com a estranha sensação de que, apesar de tudo, continuo aqui. Tentando decorar um novo texto. Mesmo que ainda não saiba quais são as falas.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1856

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Posts Relacionados

Comece a digitar sua pesquisa acima e pressione Enter para pesquisar. Pressione ESC para cancelar.

De volta ao topo