JOSÉ SIMÕES (SÃO PAULO). “Mississipi” é o nome da montagem levada à cena pela Cia. de teatro Os Satyros, que neste ano completa 30 anos de existência, e estava em cartaz no Espaço Satyros Um, localizado na Praça Roosevelt, São Paulo.
30 anos! Uma companhia de teatro com tantos anos de estrada é por si só um fato extraordinário ou mesmo uma façanha no Brasil. É para aplaudirmos em pé. Ovacionar os seus integrantes por vários minutos. Goste ou não goste do que ela produz e põe em cena. É respeito pelo tempo vivido.
O fato de uma companhia de teatro permanecer ativa durante trinta anos significa que ela precisou se reinventar muitas vezes. Seja para enfrentar a todo tipo de corrente artística e estética as quais atravessou ao longo do percurso (perdendo ao não a lucidez); seja no enfrentamento das mudanças políticas e econômicas (que não foram poucas nesses últimos trinta anos). Além do envelhecimento e da renovação da trupe.
“Mississippi” é um espetáculo que não foge a assinatura estética da companhia. Nele estão os elementos assumidos e enfrentados pelos Satyros nos últimos dez anos. O tema das relações humanas, a discussão de gênero, a crítica social, a junção da discussão estética e política, a relação com o espaço vivido e as personagens fragmentadas, não totalizantes, nas quais partes, muitas vezes ganham dimensões que ultrapassam o próprio desenho da personagem proposta na dramaturgia.
Neste espetáculo há a figura do narrador – Mississipi (Ivam Cabral) – que conduz as ações das outras personagens e, também, o ritmo do espetáculo. Não se trata de um narrador que olha “de fora” a situação, mas está “com” e “na ” história.
É dele, também, a consciência em fluxo daquilo que é apresentado em cena. São situações limites, vividas por anônimos, invisíveis que cruzam os carros nos semáforos ou estão sentados nas praças nas grandes cidades. Há momentos que merecem destaque no espetáculo como, por exemplo, os vividos pela personagem de Nicole Puzzi.
As personagens apresentadas ao público pelo narrador contam como são as suas relações de sociabilidade com o tempo e o espaço vivido. Reverberam nas cenas os ideários do homem comum: meu dinheiro, minha casa, meu sexo, minhas roupas, minha vida, meus amores, minha felicidade, minha alma boa e a minha caridade. A vida permeada de possessivos. E claro, também, de culpa!
Tudo atrelado à discussão do espaço vivido e ao modo de ocupação na urbe, muito além, das questões arquiteturais. Isto é: a vida dos indivíduos no espaço urbano, que enfrentam a cidade cada vez mais fria, sem abrigos, menos horizontal e mais hostil as diferenças. São os estrangeiros e indesejáveis presentes na cidade.
É bem por isso que o fato da companhia levar este espetáculo (e porque não dizer a sua história de vida) para palcos consagrados como o Anchieta e o Teatro Municipal é emblemático e digno de nota.
“Mississipi” tem mais qualidades do que defeitos cênicos. Rodolfo Garcia Vázquez costura as cenas com poesia e beleza, mesmo diante da crueldade do tema. Sabe utilizar pequenas traquitanas e transformá-las em recursos e efeitos cênicos emocionantes. Teatro puro. Não tem medo de explorar as vertentes do melodrama. Nem mesmo das imperfeições nas marcações. A vida apresentada nesta montagem não é perfeita, nem rigorosa, tal como poderia se apresentar, metaforicamente, num musical da Broadway . Neste espetáculo os atores cantam, desafinam e dançam mal. Tal qual num karaoquê em final de noite. A vida e as imperfeições postas em cena. É dessa matéria que Rodolfo Garcia Vázquez faz poesia e teatro nesta encenação.
Por fim, “Mississipi” já não é mais uma peça acerca da praça Roosevelt (mesmo que este seja o mote presente na dramaturgia proposta). Não se engane pelas aparências. É sobre todos nós. É sobre a Arte e os artistas. É sobre a ocupação desigual do espaço urbano, das diferenças sociais, das relações humanas profundas e domesticadas. É sobre os canalhas que utilizam por demais os possessivos. É sobre a política vivida por todos nos dias de hoje.
Atual. Vale a pena mergulhar neste universo singular dos Satyros.
Fonte: Terceira Margem