O amigo das Glórias

— Eu queria um café. Puro, por favor.

— Desculpe, mas o perfume que você está usando é o Ultramarine, da Givenchy?

— Sim, é o Insensé, da Givenchy.

— Mas este é o Ultramarine, chiquérrimo, o top deste verão.

Ele vai tirar o meu café na máquina expressa. Estou surpreso com a abordagem. Comprei o perfume numa liquidação no free shop de Buenos Aires, há uns meses. Como ele reconhecera aquele cheiro? Enquanto eu fico ali, na minha divagação, ele volta com o meu café. Tem uns 28 anos, é afeminado, meio gordinho, falta-lhe uns dentes mas sorri com uma simpatia indescritível.

— Na semana passada você apareceu por aqui com o L’eau d’Issey, né?

Estou passado. O lugar é um café fuleiro no centro da cidade, bem ao lado da minha casa, onde vou regularmente, e nunca tinha percebido sua presença ali.

— Sim, adoro os perfumes da Issey Miyake.

Eu quero saber mais sobre ele, mas não sei por onde começar. Arrisco qualquer coisa:

— Você tem um olfato ótimo.

— Sim, se tenho uma qualidade, é o meu olfato. É apuradíssimo.

— Deveria usar melhor este dom.

— A Glorinha vive me dizendo isso.

— A Glorinha?, pergunto mesmo só pra puxar assunto.

— Sim, a Glória Kalil, minha amiga.

Me surpreendo mais uma vez. Continuo sem saber como continuar a conversa. Depois de um pequeno silêncio, é ele quem fala:

— Mas a gente trabalha tanto, não é? Veja só, eu começo aqui às sete da manhã e vou até às três. Só folgo aos domingos. E esse pessoal ainda inventa a Fashion Week pra deixar a gente louco.

— Ah, você vai à Fashion Week?

— Não perco uma. E vejo todos os desfiles. E é ótimo porque lá, além de ficar por dentro de tudo, a gente encontra os amigos, né?

Eu me engasgo com o café. Peço uma água. Ele me serve. Depois estica o pulso em minha direção.

— Olhe só esta pulseira. Ganhei da Glória Maria que me trouxe de Nova York. A gente se encontrou na última Fashion Week. Veja só como essa Fashion Week é bacana. A Glória é super minha amiga mas como a gente tem uma vida atribulada, só consegue se encontrar uma vez por ano. Na Fashion Week. Aqui, ó, o cartão lindo que ela me escreveu.

E tira da carteira um cartãozinho vermelho, já meio amassado, onde se lê algo como “ao meu amigo Marcos, com carinho da Glória Maria”.

Silêncio. Estou de fato sem saber como continuar aquela conversa. Porque há muita sinceridade em seu olhar. E me lembro que há também muita honestidade em seu olfato. É ele quem quebra o silêncio:

— Posso dizer uma coisa? Eu adoro as peças de vocês. Mas a minha preferida continua sendo “Transex”.

Estou abismado.

— Ah, você viu “Transex”?

Ele me olha nos olhos. Dá um sorriso banguela e segura minhas mãos.

— Ivam, eu não perco uma peça de vocês.

Ele me chamou pelo nome? Agradeço, tenho vontade de dar um abraço apertado nele, mas minha timidez me faz ficar estático. O máximo que consigo fazer é perguntar o valor da conta e pagar. Agradeço.

— Não tem de quê.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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