LUTO | Adeus, Mauricio

Comecei a fazer teatro em 1985, aos 21 anos, quando decidi trocar o último ano do curso de Administração de Empresas por um salto no escuro: o curso superior de teatro do Teatro Guaíra e PUC/PR. Não foi uma decisão racional. Foi uma espécie de chamado.

Minha primeira peça nasceu desse gesto meio inconsequente e absolutamente necessário. Escrevi o texto – Qualquer Semelhança é Mera Coincidência – como quem escreve para existir. A direção era de Isabella Zanchi. No elenco, havia um “ator convidado”, expressão curiosa para designar alguém que já era profissional no meio de um grupo de estudantes cheios de vontade e nenhuma certeza. O nome dele era Mauricio Vogue.

A peça teve um sucesso inesperado. Críticas nos jornais, salas cheias, aquela sensação rara de que algo tinha dado certo antes mesmo de sabermos exatamente o que estávamos fazendo. Esse êxito nos deu fôlego para mais um ano juntos, para um espetáculo infantil, para a continuidade improvável de um grupo que ainda aprendia a caminhar. Mas, sobretudo, me deu Mauricio.

Ele era desses encontros que a vida faz sem pedir licença. Divertido, irreverente, artista no sentido mais inteiro da palavra. Mauricio vinha do circo, esse lugar onde a arte não é escolha estética, mas herança, sobrevivência, corpo em risco. Vinha de uma família inteira dedicada ao ofício, passado de geração em geração como um segredo precioso. Sua mãe, Regina Vogue, já era, naquela época, uma figura central da cena curitibana. E Curitiba, no final dos anos 1980, era uma bagunça linda. Uma cidade em ebulição, meio desajeitada, cheia de vontade de ser alguma coisa. Mauricio era parte dessa energia. Presença esperada nas festas, riso fácil, afeto generoso. Um amigo querido.

Nossa amizade atravessou os anos com a leveza de quem não precisa se explicar. Sempre que nos encontrávamos, era uma celebração. E, enquanto isso, Mauricio crescia profissionalmente como um meteoro. Rápido, luminoso, impossível de ignorar. Fez tantas coisas inesquecíveis que a memória parece sempre insuficiente para dar conta. Ele tinha esse dom raro de estar inteiro no que fazia, como se cada trabalho fosse, ao mesmo tempo, brincadeira e missão.

Quando adoeceu, anos atrás, nossa comunicação passou a caber nas redes sociais. Mensagens curtas, coraçõezinhos trocados, pequenos sinais de presença. Mas havia ali uma força imensa. Seu otimismo diante da doença era admirável. Mauricio não se colocava no lugar da vítima. Nunca. Lutava com tudo o que tinha, com uma coragem silenciosa e obstinada. Era um guerreiro. Desses que buscam no âmago forças que a lógica desconhece, que insistem em acreditar que ainda é possível mudar as evidências dos fatos.

Mauricio morreu ontem, no dia de Natal. Data paradoxal, feita de nascimento e despedida. Algumas pessoas entram na nossa vida sem anunciar a dimensão do que nos ensinarão. Ele me ensinou que a arte pode ser alegria sem ser superficial, coragem sem ser barulho, luta sem vitimização. E que, às vezes, sobreviver não é vencer a morte, mas atravessar a vida inteira com dignidade, riso e amor, até o último instante.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1995

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