LANÇAMENTO DUPLO | Quando Alberto e Solano caminharam entre nós

Ontem, a noite caiu sobre a Praça Roosevelt com a delicadeza dos encontros raros. Dentro da SP Escola de Teatro, duas obras nasceram, ainda que carregassem, em si, a memória de uma longa gestação. Lançamos o número 12 da revista A[L]BERTO e o volume 6 de Eternizar em Escrita Preta, o Prêmio Solano Trindade. E a cidade pareceu conter a respiração, como quem testemunha algo que sabe ser muito maior que si.

A presença da professora Eunice Prudente nos trouxe a gravidade justa desse instante. Primeira mulher negra a lecionar na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, conselheira de nossa casa e guardiã de caminhos, ela ocupou o espaço com a serenidade de quem sabe onde pisa. E também com a alegria expansiva que marcou a noite inteira. Havia convidados ilustres, estudantes atentos, música, abraços, e, sobretudo, a convicção íntima de que o pensamento se faz quando corpos se reconhecem.

Alberto Guzik, nosso companheiro de travessia e um dos fundadores da Escola, reapareceu na forma de revista e sopro. A[L]BERTO, batizada com seu nome, carrega em sua grafia o princípio que o movia: o diálogo franco, o risco como método, a pluralidade como ética. Alberto não acreditava em unanimidade. Sabia que a arte se fortalece quando confronta, colide, fricciona. Talvez por isso mesmo a revista exista. Para que ideias distintas habitem o mesmo campo sem medo de se provocarem.

Chegando à décima segunda edição, agora sob a coordenação editorial de Ferdinando Martins, professor, crítico e pesquisador atento aos ruídos e pulsações da cidade, a A[L]BERTO se debruça sobre o teatro como corpo urbano. Ferdinando nos lembra que, a cada espetáculo, reconfiguramos territórios. Às vezes deslocando fluxos invisíveis, às vezes inaugurando fraturas onde antes havia silêncio. O teatro modela e é modelado. Há algo de imagem química aí. Reagentes que só se revelam quando entram em contato.

Os ensaios e artigos reunidos nesta edição – assinados por Tato Consorti, Maíra do Nascimento, Artur Sartori Kon, Victor Nóvoa, Amilton de Azevedo, Rodrigo Carvalho Marques Dourado, Danilo dos Santos Pereira, Renan Marcondes, Júlia Anastácia, Letícia Bassit, Sofia Boito, Sergio Zlotnic, Renato Bolelli Rebouças, Giorgio Gislon e Jorge Dubatti – compõem um mosaico de pensamentos, olhares, escutas. São páginas que respiram os processos de criação, que registram conversas entre artistas e estudiosos, que acolhem análises técnicas, resenhas e traços de memória. Uma geologia de muitas camadas, feita para iluminar o ofício e o que dele transborda: nossas cidades, nossas éticas, nossos espantos.

Se a revista nos convoca à pluralidade, o livro Eternizar em Escrita Preta pede que escutemos com atenção. No seu sexto volume, apresenta as dramaturgias vencedoras do Prêmio Solano Trindade, prêmio que ergue os nomes e trajetórias de autores negros que fazem do teatro um território de invenção e de denúncia, de ferida e de cura. Neste ano, as vozes que se erguem são as de Blendon Cassio, com Depois do Homem; Clarissa Roberta, com Alerta – Estado de PixAÇÃO; e Ray Ariana, com Ínterim: Ou Como Despertam os Griôs. Blendon e Clarissa nasceram dentro de nossas salas, como estudantes da SP Escola de Teatro, o que acrescenta uma vibração viva a essa conquista. Não é apenas publicação, é continuidade.

O Prêmio Solano Trindade, realizado pela Escola e pela Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Estado de São Paulo, recebeu 27 inscrições, o maior número de sua história. E assim vemos o gesto inicial se transformar em movimento contínuo. Mais dramaturgos negros escrevendo, questionando, reinventando as formas da cena. Cada edição homenageia Solano – poeta, dramaturgo, diretor, militante, fundador do Teatro Popular Brasileiro. Homem que fez da arte uma ferramenta de povo, dança, rua, raiz.

A Comissão de Seleção – Luz Ribeiro, Lucas Moura e Bianca Melo – carregou a responsabilidade de escolher entre tantas vozes, e o fez com rigor e delicadeza. O Selo Lúcias, braço editorial da Adaap, assume a tarefa de tornar permanentes essas escritas. Publica livros nas artes, nas ciências sociais, na pedagogia e na psicanálise. Seu nome homenageia Lúcia Camargo, nossa coordenadora, referência cultural, mulher de visão ampla e senso comunitário. No plural, “Lúcias” afirma a vocação de uma Escola que não cabe em um corpo só, mas em muitos.

Na noite de ontem, entre mesas repletas, palavras ditas, palmas que ecoavam, eu senti que celebrávamos algo que não se mede. O gesto ético de reconhecer quem veio antes, de acolher quem escreve agora, de lembrar que nenhuma criação existe sem a cidade, sem os corpos que a movem, sem os caminhos abertos por tantas mãos negras.

As páginas lançadas não são objetos. São convites. São dobras na linha do tempo. São nossas tentativas de capturar aquilo que o teatro faz de mais precioso: transformar vida em pensamento, e pensamento em vida. Ontem, ao deixarmos a Escola, a Praça ainda estava acesa. Era como se Alberto, Lúcia e Solano caminhassem junto – discretos, mas presentes – nos fazendo lembrar que arte é também responsabilidade com o outro, e que escrever, publicar, pensar, premiar e celebrar é sempre um ato político.

E que privilégio é testemunhar isso em plena cidade.

Na foto de André Stefano: Tato Consorti, Gustavo Ferreira, Elen Londero, Marcio Aquiles, Ferdinando Martins, Eunice Prudente, Ivam Cabral, Tâmara David e Marici Salomão

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1988

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