Na segunda, dia 9, eu estava em Iryat Shmona, ao norte de Israel, na fronteira com a Síria e o Líbano. Era o dia do aniversário do meu pai. Se estivesse vivo, completaria 91 anos. Ele nasceu em 1921. Neste dia, andei com o meu velho na cabeça. E, antes de dormir, fui ao banheiro do hotel e cantei, bem baixinho, “Parabéns a Você” a ele.
Meu pai viveu as décadas que eu gostaria de ter vivido. Acho que se pudesse, teria escolhido nascer nos anos 1920. E iria viver no Rio de Janeiro.
Certa vez, tive uma conversa linda com a Ruth de Souza, a atriz. Me contou do Rio das décadas de 1940 e 1950 e que Copacabana era o lugar mais tranquilo do mundo. Que ia visitar o Vinícius de Moraes e quando ele não estava, esperava-o em sua sala de visitas. Porque o Vinícius, como ela e muitos, não tinha o hábito de fechar as portas com chaves. Sim, o mundo era mais ingênuo.
Meu pai era ingênuo também. E romântico. Morreu acreditando que sua doença – câncer, dos bravos – era uma pequena indisposição e que passaria no dia seguinte. Em suas sessões de quimoterapia – quando perdia a consciência e entrava em delírios – via sempre um grande salão de baile onde dançava com as mulheres mais lindas. Era bonito ver meu pai descrever esses momentos. Porque mesmo no sofrimento, ele se alimentava de um sonho ou outro.
Ele era pedreiro. E analfabeto. Mas gabava-se de ser eleitor. Porque ele sabia assinar seu nome. No final da vida, o José de sua assinatura não tinha mais vogais. Escrevia apenas com as consoantes, perdidas em meio a rabiscos.
Construiu seu próprio túmulo. Durante anos, cuidou de sua sepultura com o maior zelo do mundo. Sempre que ia visitá-lo – eu saí de casa aos 18 anos –, ele fazia questão de me levar ao cemitério para me mostrar sua obra. E quanta poesia eu tirava desses dias, meu Deus!
Como eu me orgulhava do meu velho. Acho que a minha paixão pela música veio dele. Éramos pobres, mas nossos rádios e vitrolas sempre foram os melhores do meu bairro. Sempre tivemos muita música em casa. Mas meu pai nunca balbuciou qualquer canção. Ouvia tudo em silêncio.
Tinha verdadeira adoração por Cascatinha & Inhana. Mas também me lembro de um disco de Aracy de Almeida que ele guardava a sete chaves. Sua canção preferida deste álbum era “Desde Ontem”, de Fernando Lobo, que ele ouvia sempre que estava triste.
Lembro também que, certa vez, apareceu em casa o álbum “Índia”, de Gal Costa, onde a cantora aparecia semi nua. Quer dizer, nem tão semi nua assim. Mas para a época – isso foi em 1973, 1974, mais ou menos –, o que Gal fazia era um pequeno salto em direção ao conforto dos moralistas. Meu pai destruiu a capa do disco.
Brigou tanto, o meu velho. Era esquentado e tinha pavio curto. Principalmente quando estava com umas cachaças a mais na cabeça. Sim, bebeu um pouco também. E tinha umas manias! Não deixava a minha mãe colocar cortinas nas janelas.
– Coisa de mulher da vida, vociferava.
Sua obra, talvez a mais importante, era uma ponte que ele ajudara a construir, no início dos anos 1970, lá na minha pequenina Ribeirão Claro, no Paraná. Não raras vezes, aos domingos, ele nos levava para ver sua arte. A ponte, muito pequenina, era, de certo modo, bem feia. Mas ele se orgulhava:
– Antes de mim, nenhum carro podia atravessar aqui. Hoje em dia, até ônibus.
José Francisco era o seu nome. Na minha infância trabalhou muito em São Paulo. Voltava pra casa de quinze em quinze dias para levar o dinheiro que ganhava trabalhando nas construções da tão distante terra da garoa. Segundo me contou, certa vez, existe um prédio, na Praça da República, que ele ajudou a construir.
Hoje, moro próximo à Praça e tem um jogo que gosto de fazer. Caminho pela região tentando imaginar qual prédio meu pai ajudou a construir. Cada dia escolho um. Num desses dias, se aproximou de mim um senhor com um papel nas mãos me pedindo para ler o que estava escrito. Era um formulário de rescisão de trabalho de uma construtora. O homem, como o meu pai, era pedreiro. E analfabeto também. Enquanto eu ia explicando o que estava escrito, seus olhos lacrimejaram. Depois de um silêncio, me conta que sua família mora no interior de Minas Gerais e que seria difícil explicar que fora mandado embora do serviço.
Depois, enquanto o senhor se afastava, eu, que já estava engolindo meu soluços, fiquei pensando no meu José. Quantas vezes ele não deve ter parado algum transeunte na mesma Praça da República em busca de alguma informação?
Mas hoje é domingo. Dia de graças. Dia de ir à missa, ouvir música e até beber um pouquinho. Vou aproveitar que não tem sol e pensar em recomeços. Porque hoje é domingo e meu pai fez aniversário. E pensar nisso já é bom.
me envolvi tanto nesse texto que quando percebi estava chorando!!
te amo!!
Amadíssima, esta semana te abraço. Amo!!!
obrigada! aqui vai um abraço de verdade daqueles Ó!
Amo você, menina!
Ai meu Ivam. Quanta poesia, sempre. Hoje, domingo, pé de cachimbo, sim, dizia eu aos meus pequenos, quando pequenos, Mas, hoje, domingo, 15 de janeiro, meu irmão faria anos. Fico com a saudade e pensando, como voce, do quanto ele gostava de vir almoçar na minha casa aos domingos. Falávamos muito, sobre tudo, brincava com as crianças, ouvíamos música e ele e a família iam embora, felizes. Me ajudava a lavar louças, sempre. E hoje, deixei no facebook uma música que ele me ensinou a ouvir quando pequena. Dia de saudades, mas de ser feliz, também. beijos, amado.
PARABÉNS IVAM, POR ESTAS PALAVRAS DEDICADA AO SEU PAI, REALMENTE É MUITO LINDO TUDO QUE VOCÊ ESCREVEU, VIAJEI EM CADA LINHA ESCRITA,COM CERTEZA SE ELE ESTIVESSE VIVO TERIA MUITO ORGULHO DE SER SEU PAI.E MAIS DIRIA COM TODAS AS LETRAS …SEJE FELIZ MEU FILHO AMADO…….BJS MEU IRMÃO DE CORAÇÃO….SEJE FELIZ.
Obrigado pela visita, Verinha. Beijos e saudades…
É, Rachel, querida, viver é tão complexo… Vamos conversar pessoalmente. Beijos.
Estou muito comovida com essa história linda , porém triste! más , tenho certeza absoluta , que onde o sr.José Francisco estiver , estará sempre , sempre a interceder por essa preciosa jóia que ele deixou aqui na terra para nos dar exemplo de superaçâo , humanidade e humildade , o meu ivanzinho querido!Mil beijos , adoro você!
com um carinho desses, minha semana fica mais bonita. te adoro, menina linda!
Ivam, sempre acreditei que a família é a base de tudo, mesmo com trancos e barrrancos, amo meus pais,tenho boas recordações também, e isto faz da gente cada vez mais ser humano, assim como você é.
bjos
amada, continuo acreditando e tentando criar famílias por onde passo. beijos.