‘Fragmentos de Nós Dois’ experimenta memória na ilusão da saudade

Deslumbrado pela presença de seus personagens, uma imaginação que comove.

Quantos filmes já foram feitos sobre saudade? É como perguntar quantas músicas já foram escritas sobre traição. A “lembrança”, por si só, é esse elemento que na ficção caminha ao contrário da indiferença, quase sempre na busca de uma revelação que há muito tempo já estava por ali sem que tivesse sido acessada, invadida, anunciada, como o incrédulo Funes que passou anos reconstruindo cada milímetro percorrido de sua infância no conto do argentino Borges. Ainda inédito nos cinemas, Fragmentos de Nós Dois, de Weslley Nascimento, sabe brincar com esses pensamentos corriqueiros à medida em que seus personagens tão quietos vão tomando a tela como se estivessem isolados do mundo, ilhados numa teia de saudades.

Num processo de luto que traça uma linha entre a origem e o destino de sensações alheias, Martim convida um grupo de amigos para se despedir da casa de seu falecido avô, que em breve terá um novo proprietário. Como logo se revela, essas pessoas não dividem apenas saudades em comum, mas também segredos e, principalmente, desejos. Sabendo que tem em mãos uma trama bastante minimalista, o quinteto constrói essa história de olho nos pequenos movimentos de suas interações, colocando o espectador sempre nessa dúvida diante do carinho e de certa desconfiança que esboçam entre si. Quem sente falta de quê? De quem? As perguntas voam.

Para dar gravidade a essas curtas transformações, a câmera pousa em planos bastante próximos, nos rostos, nos olhares, nas conversas, o que evidencia as presenças enigmáticas do elenco: Bruna Vilaça (também roteirista), Pedro Vinicius, Felipe Herculano, Carolina Viana e o próprio Weslley Nascimento, independente de se apresentarem em monólogos, em duplas ou todos juntos. Os cenários apertados, as luzes que anunciam melancolia e a trilha quase meditativa vão se encaixando com os relatos, dando essa constante sensação de que aquelas pessoas estão meio perdidas num sonho, sossegadas, prestes a acordar.

Embora essas impressões inebriadas me lembrem o ritmo de outros filmes, como na deliciosa contemplação de Passou (Felipe André Silva, 2020), na imaginação de Desterro (Maria Clara Escobar, 2019) e até mesmo na delirante memória de A Metamorfose dos Pássaros (Catarina Vasconcelos, 2020), a trama vai estacionando à medida em que avança na segunda metade. Tanto por ter reservado ao início suas melhores somas de conflito e estética para apresentar os personagens, quanto pela forma que prefere “concluir” as tensões com as fitas em VHS. Ao se separarem, as peças desse jogo causam menos furor, pulverizam, tornam a jornada uníssona, propositalmente repetitiva. Por outro lado, essa imersão direta na individualidade de personagens que pensávamos conhecer bem, dá a essa história uma intimidade inconfundível – saio desse filme, afinal, sentindo que pareço um pouco com cada uma dessas pessoas.

Entre esses amigos há cuidado, amor e o que é mais interessante: um mistério curto, breve, aparentemente passageiro, como se eles já soubessem apesar de esconder. Os “fragmentos” vão conquistando aos poucos, e essa, diferente do que vai parecendo, não é uma história triste. Quando se dedica aos diálogos, sempre com charmosas pitadas de humor e carinho, Fragmentos de Nós Dois consegue ser um filme bastante terno. “A gente não deveria estar feliz?”, pergunta um personagem diante da esperança do que aquele ano de 2000 prometia aos que estavam ali para “se despedir” de histórias que eles mesmos tinham construido. Como espectador, penso nas minhas próprias saudades – e de todos que estavam ao meu redor.

O filme será exibido no Festival SatyriCine Bijou, em São Paulo.

Direção: Weslley Nascimento

Roteiro: Bruna Vilaça

Elenco: Bruna Vilaça, Carolina Viana, Felipe Herculano,

Pedro Vinícius e Weslley Nascimento

Direção de fotografia: Weslley Nascimento

Som direto: Fabiano Savan

Trilha sonora original: Matheus de Bezerra

Direção de Arte: Bruna Vilaça e Fernanda Vilaça

Montagem e finalização: Weslley Nascimento

Desenho de som e mixagem: Henrique Berrocal e Pedro Caetano

Ano de Lançamento: 2022

Fonte: Ensaio Critico

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