Eu me encontrei com a psicanálise pela primeira vez quando ingressei no curso de teatro da PUC/PR, em Curitiba, em meados dos anos 1980. Tive, desde o primeiro ano da faculdade, um professor freudiano, o argentino Hugo Mengarelli, que, além de professor e diretor de teatro, também foi psicanalista.
Hugo nos trouxe o horror do enfrentamento com nossos duplos e expunha, a cada aula, a necessidade das conexões com as subjetividades que, para ele, seria algo como trabalhar nos diferentes graus de consciência, a partir da cena e, muitas vezes, muito além delas. Eu tinha acabado de completar 20 anos e, naquele momento, eu sabia: tinha, além da minha sobrevivência, a responsabilidade de organizar e pensar um futuro que me cobraria alguma estabilidade. Emocional, principalmente. Não, não foi nada fácil.
Imediatamente – e por intermédio do Hugo – eu comecei a fazer análise e, durante os anos que frequentei o curso de teatro, me encontrei com o dr. Helio Rotenberg, que fazia comigo um atendimento social porque eu não possuía dinheiro para pagar suas consultas. Na época eu não tinha nenhuma noção de quem era o dr. Helio, importantíssimo em minha vida. Fui saber depois, bem depois, que se tratava de um dos nomes mais importantes da psiquiatria de Curitiba, e psicanalista formado pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
Mas foi no terceiro ano do curso de teatro que conheci Lilian Fleury Dória, nesta época professora e diretora de teatro. Hoje, Lilian, além da pedagogia e do teatro, também é psicanalista e escreve livros. Foi ela quem trouxe a ideia de montarmos “Senhora dos Afogados”, de Nelson Rodrigues, e quem me apresentou à obra de Flavio Fortes D’Andrea, com quem, durante alguns anos, iria me corresponder através de cartas. Outros tempos.
Essa experiência com Lilian foi fascinante. Talvez o processo mais intenso e perigoso que vivi. Lilian é dessas artistas que recusa a rede de proteção. Seu olhar e sua dimensão de mundos são estertores de sobrevivência. Sobre isso a gente volta a falar em outra ocasião. Mas o que aconteceu naquele momento rompia qualquer possibilidade de volta. Eu estava na beira do abismo e a psicanálise, agora sim, fazendo todo sentido em minha vida. Foi quando eu vivi o meu Édipo mais profundo e quando minha relação com meu pai ganharia beijos. Até aquele momento, cumprimentar o meu velho com um beijo era algo completamente improvável.
Lá no início dos anos 2000, neste momento com diagnóstico de depressão e visitando psiquiatras com regularidade, voltei ao divã. Agora – e depois de mais de uma década – em São Paulo. A partir daí, a psicanálise passou a me conduzir mais objetivamente. Em 2010 eu começaria a estudá-la. Minha relação com Contardo Calligaris, de quem já era amigo uns anos, se intensifica neste período. Contardo iria puxar a corda e me provocar:
— Você tem instrumental e já está ouvindo vozes, meu querido, e riu.
Então meio que eu levei essa brincadeira mais a sério do que devia, na verdade. Talvez eu devesse ter ficado no tom de chiste do meu amigo. O problema é que entendi, imediatamente, que queria saber mais sobre aquele processo que havia me repartido em zilhões de pedacinhos, lá no início da minha juventude. E não teve jeito, foi arrebatadora a relação. Uns anos depois e lá estava eu no Projeto Apoiar, do Instituto de Psicologia, da USP, atuando como psicanalista.
Foi nesta altura que comecei a ouvir vozes. Porque neste momento eu estava completamente envolvido com o meu novo ofício, em um processo tão intenso que, de repente, eu me vi tomado completamente por ele, bloqueando minhas agendas para dar conta do trabalho na clínica. Estava encantado, na verdadeira acepção dessa palavra. Primeiro, disponibilizando para o meu novo ofício minhas noites de folga; depois, os finais de semana. Quando vi, nunca mais saí para jantar com amigos e, quando me dei conta, não tinha mais horário livre pra criar, ensaiar e apresentar minhas peças no teatro. Neste último ano, pela primeira vez, em 34 anos de carreira profissional no teatro, fugi dos palcos e das salas de ensaio. Sim, eu havia sido enfeitiçado e só queria ouvir vozes.
Não foi um seguimento intencional e consciencioso. Mas não estava nada iludido: a infinitude é um processo consciente porque, antes, havia aprendido, também com o meu Édipo, que não me adiantaria fugir das realidades. Elas me encontrariam, mesmo que eu tivesse que me esconder nos recônditos mais improváveis ou numa pequenina casca de noz. Não existe simplicidade nas vivências de nossas experiências emocionais e a gente vive o que é possível viver. Não é uma opção, é da natureza de todas as coisas.
É a partir de nós mesmos que alcançaremos a possibilidade – ou a necessidade – de escutar o outro, na medida que nos será possível. A busca, normalmente, será sempre por aquilo que me é desconhecido, mas que, de alguma forma, também me é familiar. Uma procura por alguma coisa que eu posso até intuir, que penso que conheço, mas que me aterroriza. Algo como um assombro, uma ideia flutuante ou uma estranheza que também apavora.
Freud até falou sobre isso em seu artigo “Unheimlich”, de 1919, que em português poderia ser algo como “inquietante” ou “infamiliar”, de coisas ou situações que são familiares para nós, mas que podem ser perturbadoras ou ameaçadoras quando as olhamos a partir de perspectivas múltiplas. Algo escondido ou reprimido em nosso inconsciente que, quando vem à tona, provoca sentimentos de ansiedade e estranheza.
Não, esse percurso nunca é tranquilo. É um caminho muitas vezes desagradável porque a teoria só será revelada, descoberta ou passa a estar disponível no trabalho em si, no meio do caos, no olho do furacão. Se aprende a escutar escutando e a falar, falando. Não existe outra maneira. O trabalho se dá no abstrato que nasce de uma experiência que lidará sempre com nossas ausências, aterradoras para muitos, é bom dizer. Trabalha-se com um hiato entre o desejo e a satisfação. Embora sob pontos de vista objetivos, em direção à imaterialidade. Não existe análise sem dor.
Este caminhar não é nada tranquilo. Agressivo, muitas vezes. Mas pode ser apaixonante, creiam. Neste processo de subjetivação onde nós, sujeitos, nos tornamos indivíduos e, portanto, aptos às subjetividades, podemos chegar à poesia das coisas e, talvez aí é que resida a verdadeira importância das experiências.
Nesta semana, numa aula de Bion, com a professora e psicanalista Anne Lise Scappaticci, chegamos à questão das abstrações que nascem das experiências e o pensamento que precisa tolerar a frustação. Neste jogo, a experiência que é sempre dual – na medida que não consegue contar com um eu ideal – labutará com o eu que lhe será possível encontrar.
Anne Lise se lembrou de Woody Allen que teria respondido sobre felicidade, algo como:
— Dentro de uma personalidade angustiada eu sou feliz.
Mas já que estamos falando em dualidades, trago uma reflexão do meu amigo Contardo que, ao pensar a felicidade, vai dizer:
— Não quero ser feliz. Quero é ter uma vida interessante.
Com personalidade angustiada ou pela busca de uma vida interessante, a psicanálise está aí também para, se não responder, problematizar estas questões. Por isso para nós, analistas, a vida psíquica tem um peso que a maior parte das pessoas sequer pode dimensionar. Talvez (só) pela aparente complexidade de trânsito desta mesma dualidade como construção ideológica de forças contrárias que agem em sobreposição ao mesmo objeto. E é Bion quem nos desvendará a possibilidade de correspondência com essas dualidades. Embora centrado no trabalho com grupos, enxergava a individualidade e, através da dualidade funcional, mas conectada, colocava o singular em direção ao coletivo. Em linha reta e em polos contrários que se modificam em seus interiores o tempo todo, o mundo psíquico é um universo fascinante. A psicose é rápida como uma guerra, mas ser saudável nos custará muito caro.
— Modificar é lento, mas fugir é rapidinho, reforçou Anne Lise.
Mas existem coisas que são como são. A natureza delas é ser o que é, simples assim. Em “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll, por exemplo, o Chapeleiro está sempre preso em um eterno chá da tarde, como resultado de uma maldição, aprisionado num tempo desordenado e fora de sincronia, servindo o chá às seis horas, independentemente do momento do dia. Nesse mundo de Alice, a falta de conformidade do Chapeleiro com as normas sociais e a lógica convencional não são apenas reflexos de um estado de desordem. Ele está ali para desafiar seu tempo. Afinal, sempre serão seis horas para sua incumbência que é servir o chá.
É assim que, a partir de uma perspectiva muito particular – e porque eu resolvi fazer poesia –, em minha clínica sempre será meio-dia, a qualquer momento e em qualquer tempo. Porque em frente ao prédio do meu consultório, na rua Maranhão, em Higienópolis, fica a igreja de Santa Teresinha que, pontualmente, todos os dias, ao meio-dia, toca seus sinos. Porque as coisas são o que devem ser, eu estou por lá às quartas e aos sábados, neste horário. E, todas às vezes, quando escuto estes sinos badalarem, mesmo sendo o ateu que eu me tornei, é como se alguma voz divina estivesse me chamando para escutá-la. Porque, sim, eu ouço vozes.
Gostei muito da tua reflexão
Coloco outra que ouvi em algum lugar:
“Alguns dizem que a vida é difícil porque estão esperando uma coisa que a vida humana não é”
sensacional! e, daí, talvez, a dúvida do caetano: “existirmos: a que será que se destina?”.