Permitam-me começar este texto com uma confidência: eu sou o dramaturgista da SP Escola de Teatro. Desde o primeiro risco no papel, venho costurando, muitas vezes em silêncio, o espetáculo institucional e pedagógico que hoje se apresenta como referência – da escolha de Marici Salomão para comandar o curso de Dramaturgia à chegada de Beth Lopes na coordenação pedagógica. Da arquitetura do projeto de formação à conquista de parceiros, verbas, contratos, estratégias. Da própria montagem de uma das maiores bibliotecas de teatro do Brasil à curadoria dos materiais de cada semestre. Não faço nada disso só, é evidente, mas sigo, como dramaturgista, ampliando as possibilidades, tal qual o Intendente alemão: um estrategista que enxerga a cena e o mundo num mesmo plano.
E é justamente sobre essa função quase invisível que gostaria de falar agora. Quando você assiste a uma peça, percebe quem está pensando a cena por trás? E mais: há mesmo alguém pensando ou estamos apenas repetindo formas consagradas? As respostas importam porque o dramaturgismo é o lugar onde a arte evita virar eco. Ele sustenta o que ninguém aplaude – como a enfermagem num pronto-socorro, o assistente de direção num set de cinema ou o editor numa redação. Em todos esses casos, o brilho público repousa sobre outro ombro, mas sem o trabalho de bastidor nada funcionaria.
No teatro, quem habita essa retaguarda é o dramaturgista. Não é executor, não é operário: é quem pensa o antes, liga o gesto do ator à cor do figurino, ao ritmo da iluminação, à ética do discurso. É quem pergunta, insistentemente: “o que esta obra quer dizer – e o que ela está dizendo sem querer?” Sem esse olhar, o espetáculo corre o risco de virar coreografia bonita sobre o nada, armadilha do esteticamente impecável e politicamente indiferente. É o dramaturgista que pressente quando uma narrativa linear adormece, quando um salto temporal injeta vida, quando o público precisa ser convocado para dentro ou mantido cuidadosamente à distância.
Pensem em “Cabaret Stravaganza”, criação dos Satyros em 2012, escrita por Maria Schu ainda aluna da nossa Escola. Ali, o dramaturgismo modulou um universo futurista e queer onde estética era ética: o visual luminoso, a trilha eletrônica, o ritmo frenético, tudo conspirava para uma ideia de futuro disfuncional e libertário. Esse pensar-a-obra-como-um-todo diferencia dramaturgismo de dramaturgia: a segunda escreve; o primeiro interroga, estrutura, incomoda.
O título oficial surgiu no século XVIII, quando Gotthold Ephraim Lessing foi contratado pelo Teatro Nacional de Hamburgo para assistir ensaios, dialogar com diretores e publicar ensaios críticos. Lessing inaugurou a figura do filósofo em residência, mediador entre texto, encenação e público. Ainda hoje, teatros alemães mantêm dramaturgistas no quadro fixo, mas, pelo mundo, a prática se expandiu e já não cabe num organograma. Nos dias atuais, o dramaturgismo pode nascer de improvisos, de arquivos coletivos, de escutas do espaço e do corpo; pode existir mesmo sem texto prévio, mesmo sem autor definido.
Vejamos alguns exemplos brasileiros. No Teatro da Vertigem, cada escolha espacial – o hospital abandonado, a navegação pelo Tietê, a igreja desconsagrada – é decisão dramatúrgica que obriga o público a experimentar outra relação com a cidade. Na Companhia do Latão, o pensamento brechtiano costura teoria e realidade social: ensaio vira laboratório de debate e contradição. Nos Satyros, o dramaturgismo é visceral, afetivo, cravado na urgência do centro de São Paulo. “Pessoas Perfeitas”, de 2014, brotou dos relatos ouvidos na Praça Roosevelt. Em todos esses processos, o dramaturgista – declarado ou difuso – age como arquiteto do caos, escudo ético, amplificador de sentido.
Seu ofício é movediço: ouvir ensaios com escuta crítica; arquivar referências; organizar ou implodir narrativas; revelar contradições éticas, estéticas, políticas; agir como um estrangeiro da sala livre da anestesia da rotina. Às vezes a tarefa é coletiva, como no Grupo XIX; às vezes recai sobre uma pessoa só, incumbida de apontar quando o segundo ato esvazia ou quando uma imagem trai o discurso feminista que a companhia defende.
No Brasil, esse modo de pensar irrompe com força nos anos 1990, embalado pela redemocratização e pelo surgimento de coletivos que queriam romper estruturas engessadas. O dramaturgismo passou a confundir-se com a própria ética do fazer: como representar dor sem explorá-la? Como exibir diversidade sem caricaturar? Como converter vulnerabilidade em potência estética? Perguntas que não cabem num roteiro, mas que definem toda uma criação.
Talvez por isso, em tempos de algoritmos que enxugam a complexidade em slogans, pensar dramaturgicamente seja ato de resistência. O dramaturgismo nos obriga a mergulhar fundo, a ouvir silêncios, a nomear ruídos, a reconhecer contradições. É, simultaneamente, forma e crítica, ferramenta e questionamento.
Volto, então, ao lugar de onde parti: aquela mesa de trabalho na SP Escola de Teatro onde contrato professores, redijo convênios, calibro orçamentos, acolho ideias. Sim, o dramaturgista também firma contratos e negocia patrocínios – porque a coerência entre discurso e estrutura financeira é, ela mesma, questão dramatúrgica. No modelo alemão, chama-se Intendente. Entre nós, é apenas alguém que recusa a separação entre arte, política e administração.
Se a dramaturgia escreve, o dramaturgismo interroga. Importa menos o que contamos do que aquilo que decidimos calar. Importa como a forma diz tanto quanto o conteúdo. Importa quem ocupa o centro e quem permanece à margem. O teatro continua sendo um território de disputa de sentidos, e o futuro da cena talvez não dependa das tecnologias que acenam, mas da velha pergunta que o dramaturgista insiste em refazer: “o que estamos dizendo com isto?”. Quando a resposta nasce de pensamento crítico, generoso e inquieto, a arte deixa de ser ornamento e volta a ser necessidade. E, nesse instante, ainda que nenhum aplauso nos alcance, temos a chance de reinventar o mundo.
Então, se ao sair do teatro você sentir não apenas o aplauso nas mãos, mas um formigamento crítico na nuca, saiba: há um dramaturgista sorrindo no escuro.