UMA CANÇÃO | Epifania das memórias encobridoras

Em Curitiba, domingo, missa das onze na Igreja de Santa Felicidade. Eu o reconheci pela respiração entrecortada antes mesmo de notar os olhos marejados. Ele vinha de onde a liturgia, em vez de consolo, lhe abrira a represa da infância. “Você se lembra do rosto da nossa mãe quando a gente era criança?”, me perguntou, num timbre que misturava súplica e espanto. Respondi que sim, e ele confessou não conseguir mais enxergar o rosto dela jovem—somente a mulher grisalha dos retratos mais recentes.

No entanto, dentro da igreja naquele dia, disse ele, bastou o padre entoar um hino antigo para acender a lâmpada do esquecimento. De súbito, estávamos de volta ao quarto apertado das três camas—uma de casal, duas de solteiro—onde conspirávamos contra o sono. Nossa mãe, sentada à beira, ajustava cobertas, distribuía beijos com a precisão de quem divide o pão em partes iguais e o faz render. Depois, em voz de passarinho, soltava a cantiga: “Mãezinha do céu, eu não sei rezar…”

O detalhe o atravessou como flecha: a palavra “mãezinha” pronunciada ali, nos arredores de sua saudade, devolveu-lhe o rosto que faltava. Foi uma epifania singela—dessas que o inconsciente guarda no bolso do casaco para oferecer quando o calendário insiste em lembrar que é Dia das Mães. A gente se abraçou, embalados pelo eco dessa canção que nos ninava muito antes de entendermos o que era prece.

Crescemos soltos, respirando o território vasto do quintal, inventando rios em valas de chuva e governando reinos de formigas e de aranhas. Liberdade era matéria-prima: corríamos até cansar, voltávamos com joelhos ralados e um certo triunfo no peito. Mas, se o dia era puro desvario, a noite pertencia a ela. Nossa mãe—que repartia amor por seis sem jamais diluí-lo—costurava o caos do dia aos retalhos do afeto. Uma prece aqui, um canto ali, e o mundo desacelerava ao ritmo do seu lençol puxado até o queixo.

Hoje entendo: amar muitos é confiar no tempo como aliado. Cada gesto minúsculo—uma colher de remédio, um afago no cabelo, um “durmam com Deus”—ficava guardado em silêncio, à espera do momento de justificar sua existência. Décadas depois, naquela igreja, o amor que ela distribuiu sem alarde mostrou recibo: o rosto esquecido voltou inteiro porque a música cavou um túnel entre o agora e o então. É assim que a vida se legitima, empilhando lembranças como tijolos até que a casa fique firme o bastante para sobreviver ao esquecimento.

Senti ali que carregávamos algo mais leve que saudade: era a prova de que memória não serve apenas para reconstituir o que foi, mas para garantir que ainda somos. Nossa mãe, que sempre dividiu amor, continua a nos completar—não pelo que recordamos com nitidez, mas pelo que ressurge quando menos esperamos: um hino, um cheiro de lençol passado a ferro, o conforto de saber que, mesmo dispersos pelo mundo, ainda dormimos lado a lado na mesma canção.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1853

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