DESIGUALDADE | O País das Fronteiras

Leio na Folha de S.Paulo que o Brasil acaba de alcançar mais um pódio. Não desses que a gente celebra. Segundo o relatório anual do banco UBS, divulgado ontem, quarta-feira, 18 de junho, somos, entre 56 países analisados, o número um em desigualdade no mundo. Primeiro lugar absoluto. Dividindo o topo com a Rússia, como se fôssemos irmãos de uma tragédia estatística.

O índice de Gini, essa régua amarga que vai de 0 a 1 e mede a concentração de renda, nos cravou num 0,82. Quanto mais perto de 1, maior o abismo entre quem tem tudo e quem não tem nada. E nós, Brasil, estamos praticamente dentro do 1. Um país que cultiva desigualdade como quem cultiva cana, soja, milho.

Fico pensando na imensidão que habitamos. Um território continental, com algumas das maiores extensões de terras cultivadas do mundo. Um país que se gaba de sua produção agrícola, mas que vê, todos os dias, parte de sua população dormir com fome. Como é possível? Como foi que nos acostumamos a conviver com isso?

E sim, é óbvio, chegamos até aqui por um caminho conhecido: uma política miserável, corrupta, cega ao que realmente importa. Pela ausência crônica de investimento em educação. Pelo descaso histórico com a cultura, essa mesma cultura que poderia, se deixassem, fabricar pensamento crítico e criar anticorpos contra a indiferença.

O Brasil virou uma máquina de construir fronteiras invisíveis. Barreiras que não aparecem nos mapas, mas que estão em cada esquina, em cada avenida. São as cercas elétricas, os muros de vidro fumê, os seguranças nas guaritas, os condomínios com cancelas e câmeras de vigilância. E, no meio de tudo isso, a figura persistente do porteiro. Um personagem que é quase uma instituição nacional.

Porteiro: profissão que, em boa parte do mundo, quase não existe mais. Mas aqui resiste, como uma metáfora viva da nossa incapacidade de confiar no coletivo. Sem segurança pública, criamos nossas fortalezas particulares. Empilhamos medos e alarmes. Trancamos a cidade em pequenos blocos de privilégios.

E, enquanto isso, do lado de fora dos muros, cresce a fila da fome, da falta de acesso, da indignidade. A conta não fecha. Nunca fechou. Somos um país onde poucos acumulam muito e a maioria luta diariamente para sobreviver. Não é só injusto. É doente.

Como caber dentro dessas estatísticas quando temos uma geografia tão generosa? Como aceitar que, com tanto chão fértil, a gente ainda assista crianças dormindo com o estômago vazio?

Fronteiras, muros, bolhas, portarias. Vamos nos isolando de nós mesmos. E o que mais assusta: fingimos que é normal. Fingimos que sempre foi assim. Como se o destino tivesse escrito, em algum livro velho e empoeirado, que uns nasceriam para o excesso e outros para a falta. Como se a geografia da injustiça fosse uma fatalidade e não uma construção humana, diária, política.

Mas não. Não foi sempre. E não precisa continuar sendo. Ainda há tempo de desmontar os muros invisíveis. Tempo de olhar para o outro sem o filtro do medo ou da indiferença. Tempo de fazer da educação, da cultura e da política territórios de reconstrução e não de abandono. Porque, no fim, ou a gente aprende a dividir o pão… ou vai continuar colecionando os troféus amargos da desigualdade.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1862

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