DECOLONIALIDADE | O grito e as brechas

Algumas escolas de teatro ensinam a projetar a voz, a entrar em cena, a cair com elegância. E outras escolhem, com uma certa teimosia poética, ensinar a cair do mundo e refazê-lo. Um pedaço por vez, como quem varre a casa depois de um terremoto.

A Ernst Busch, em Berlim, é dessas que, apesar do peso da tradição e das colunas neoclássicas, insiste em abrir janelas. É lá que Rodolfo García Vázquez, professor convidado neste ano, leva dois temas que ainda assustam muita gente: teatro decolonial e teatro digital. Dois terrenos espinhosos, onde a maioria prefere não pisar. Por medo de ferir os pés. Ou de descobrir que não sabe caminhar sem as muletas da Europa.

Não é a primeira vez que Rodolfo nos representa em instituições importantes pelo mundo com esses debates que parecem sempre um pouco fora do lugar. E é exatamente por isso que são urgentes. Rodolfo carrega não apenas uma pesquisa acadêmica, mas a inquietação de uma prática. Desde que nasceu, em 2010, a SP Escola de Teatro já trazia essa chama decolonial, ainda sem nome. Quando, no Brasil, mal se ousava dizer que a Grécia e o Egito não eram as únicas entradas possíveis para pensar a história da civilização ou o teatro, já havia por aqui uma recusa. A de aceitar que a experiência europeia fosse o único mapa possível para compreender o mundo.

Temos até literatura para isso. Foi Rustom Bharucha quem primeiro, com coragem e ironia, plantou esse espinho no coração do teatro contemporâneo. Quando Peter Brook decidiu atravessar oceanos para transformar o Mahabharata em espetáculo, foi Bharucha quem ergueu a voz. O que significa um inglês, radicado na França, “traduzir” a Índia para o olhar do Ocidente? Não era só um embate estético. Era uma ferida exposta.

Esse grito de Bharucha, no final dos anos 1980, ainda ecoa nas salas de ensaio, nos corredores da filosofia e nos cafés da sociologia. Porque, embora o mundo tenha mudado, a Europa continua a brilhar como se fosse o Sol. E nós, ao redor, aprendemos aos poucos que também sabemos acender nossas próprias estrelas.

Na SP Escola de Teatro, essa brisa insubmissa sopra desde o início. A gente não se organiza a partir da Grécia antiga porque não é de lá que partimos. Nem do Egito faraônico. Interessa-nos o que nossas tradições, aqui e agora, podem apontar como futuro possível. O teatro europeu, com suas codificações precisas, nos serve apenas quando ajuda a abrir caminhos. Não a fechá-los. Para nós, a tradição só tem sentido se puder iluminar uma saída.

Por isso seguimos sendo convidados a contar essas experiências em lugares onde ainda é difícil para alguns imaginar um mundo sem Europa no centro. E é justamente essa dificuldade que torna esses encontros tão necessários. Afinal, o teatro sempre foi, também, uma arte de desconforto. E de devolver perguntas ao silêncio.

Rodolfo está lá, na Ernst Busch, com suas provocações. Em breve, Bharucha estará aqui, conosco, lembrando que ainda há muito a dizer. E a SP Escola de Teatro seguirá, como sempre, desconfiada das certezas e atenta às brechas por onde entra o vento.

Porque, no fim, talvez o teatro seja isso. A arte de fazer do terremoto uma dança. E de lembrar que, mesmo quando a Europa se julga o centro, há muitos outros sóis esperando para nascer.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1880

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Posts Relacionados

Comece a digitar sua pesquisa acima e pressione Enter para pesquisar. Pressione ESC para cancelar.

De volta ao topo