CRÔNICA | Uma tragédia em preto e branco

Há quem diga que a vaidade não mata, mas deixa sequelas. Ontem eu descobri que também mancha, arde, esfola. E ainda faz você chegar a um restaurante elegante com cara de quadro cubista. Tudo isso por uma boa causa: homenagear uma amiga queridíssima em seus noventa anos.

Nove décadas. Não é todo dia que alguém cruza a linha de chegada com tanta leveza, cercada por vinhos bons, amigos queridos e um menu degustação do superchef Alex Atala. E eu quase não fui. Por pouco, muito pouco. Só um telefonema e a ajuda providencial de um amigo me salvaram do desastre completo.

Mas antes…

Antes veio a barba. Ah, a barba!

Era uma noite elegante, daquelas em que a gente tira do armário a roupa especial que esperava sua vez, e por um milagre meteorológico o frio paulistano deu uma trégua para que eu finalmente pudesse usá-la. Então decidi que a barba, tão branca e desalinhada, também precisava acompanhar o traje. Não podia destoar.

Lembrei que meu amigo, o mesmo que me salvaria depois, certa vez me ensinou a pintar a barba. Eu já tinha feito isso três ou quatro vezes, com resultados… digamos… questionáveis. Mas ontem, para estar à altura do aniversário e do restaurante chiquérrimo, resolvi caprichar.

Preparei a tinta como um alquimista convencido de que dobrar a dose dobra a eficiência. E dobrei. Dobrei também o tempo, pensei. Se nas instruções dizia seis minutos, por que não oito? Oito sempre foi um número simpático para mim. Fiquei no chuveiro, esperando o milagre cosmético acontecer, imaginando uma barba de galã de cinema italiano.

Quando saí do chuveiro, lá estava eu: um vilão de novela mexicana.

Minha barba estava preta. Mas não preta charmosa. Preta tipo carvão, tipo armário laqueado, tipo buraco negro. E meu rosto? Uma topografia de manchas indecifráveis, um mapa do inferno de Dante pintado com guache escolar.

Tentei de tudo. Sabão, xampu, álcool, Veja multiuso. Mais parecia que eu esfregava um azulejo da cozinha do que um rosto humano. Nada. Liguei para meu amigo, em pânico, pedindo socorro. Ele chegou em casa com um pote de água oxigenada e um sorriso confiante que, depois de dez minutos, virou uma pesquisa frenética no Google. Descobrimos juntos que detergente ajudava.

E lá fomos nós.

No final, depois de muito esfregar e de aparar o máximo possível da barba, restou um mosaico indeciso de pelos. Alguns pretos, outros quase loiros de tanto detergente, outros já pedindo aposentadoria. Me olhei no espelho e meu amigo disse:

— Se o restaurante tiver uma iluminação difusa, você passa por artista performático e ninguém percebe.

E foi mais ou menos isso que aconteceu.

O restaurante, cúmplice, tinha a tal iluminação difusa. Cheguei com a barba meio Pablo Picasso, meio Salvador Dalí, sentei-me ao lado do Ignácio de Loyola Brandão e fiquei pensando no que ele faria com uma história dessas. Provavelmente me transformaria num personagem de realismo fantástico para uma crônica bem-humorada em sua coluna no Estadão.

A noite foi linda, minha amiga radiante, os vinhos ótimos, a comida espetacular. E a barba? Ah, a barba… ainda hoje, se me olho bem de perto no espelho, vejo nela a memória dessa tragédia cômica. Um lembrete de que vaidade e tintura, quando misturadas em excesso, resultam num espetáculo inesquecível.

E de que algumas histórias, quando bem vividas, já nascem crônicas. Mesmo que com a barba toda errada.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1901

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