Às vezes penso que a vida nos reserva pequenas epifanias que só se revelam quando deixamos de planejar. Guadalupe e Bernardo, dois nomes que soam como capítulos de um evangelho doméstico, chegaram assim, sem pedir licença, mas com a delicada certeza de quem sempre pertenceu àquele lugar.Ela, uma mini golden com vocação para o afeto absoluto; ele, um ponsky diminuto, atrevido, quase uma vírgula viva entre os móveis da casa. Vieram de presente, como quase tudo o que é essencial. Inesperados, mas precisos.
No início, hesitei. Não sabia se estava pronto para cuidar de algo que respira, que depende, que exige presença. Mas bastou vê-los. Há encontros que desfazem qualquer resistência. E o olhar de um filhote é desses fenômenos que desarmam as teorias. Guadalupe já tinha a sua rotina mundana de sol e sociabilidade. Fazia escolinha, frequentava o Parque Augusta, desfilava na Praça Roosevelt, conhecia o mundo e as suas texturas. Bernardo chegou e, com ele, o recolhimento. Precisava cumprir o protocolo vacinal e, nesse tempo, se se manter afastado da rua e dos outros cães. Guadalupe teve que fazer companhia a ele. Então, as janelas se tornaram horizontes, e o apartamento, o novo território da infância.
No entanto, foi nesse confinamento que algo se transformou. Os tapetes se tornaram mapas de aventuras. As poltronas, monumentos às ruínas alegres. A casa, antes silenciosa e organizada, se transformou num organismo pulsante, um verdadeiro caos que passou a respirar amor. E como é curioso perceber que o que parecia perda de controle era, na verdade, o nascimento de uma ternura.
Eles fizeram cocô e xixi pela casa toda, destruíram a poltrona do meu quarto, o sofá da sala, os cobertores. Não senti raiva nem exasperação. Porque, como em toda boa história, o que parecia tragédia tem virado rito de passagem. A destruição, ali, é também a fundação de um outro lar. Um em que as coisas valem menos que os vínculos, em que o tempo se mede pela alegria dos reencontros.
Chegar em casa, agora, é reencontrar um mundo que vibra. Dois corpos pequenos correm em direção a mim, saltam, giram, festejam como se eu fosse a própria redenção. É um amor sem ressalvas, sem contrato, sem passado. E talvez seja isso o mais divino. Esse amor que não precisa ser merecido, apenas correspondido.
Nos bares, nas noites, nas boates, por tanto tempo procurei uma forma de repouso, um lugar onde pudesse existir sem precisar provar nada. Não encontrei. Agora, encontro. Em casa. No abanar de um rabo, no olhar que me reconhece antes mesmo que eu me reconheça. Guadalupe e Bernardo me ensinaram o que é o silêncio. Aquele que não pesa, aquele que acolhe.
Talvez a maturidade seja isso. Trocar a vertigem do mundo pelo assombro do cotidiano. Descobrir que o verdadeiro espetáculo não acontece nos palcos, mas na sala de estar, entre brinquedos mordidos e mantas rasgadas. Que o amor, quando verdadeiro, não tem fala nem roteiro. Apenas respira, corre e late.