Sei que existem pessoas que acordam com o canto do galo. Eu desperto com o latido da responsabilidade que atende pelo nome de Guadalupe. Desde que a pequena, uma mini-golden com pretensões de gerente de fábrica, entrou em cena, meu despertador toca às 6h30, mas é Lupita quem assina o ponto. Basta o primeiro tilintar da coleira para que o dia comece a distribuir ordens de serviço. Às 7h15, Terê, sua treinadora, vem buscá-la — e eu fico reverberando o silêncio depois da sirene, sabendo que já não há mais como me esconder da luz.
O curioso é que esta matina compulsória não é inédita. Passei o ano passado inteiro levantando às 5h15, jaleco psicanalítico a postos, para ouvir pacientes antes mesmo de o trânsito despertar. Corrigi o excesso nesta temporada, mas o destino tem senso de humor canino. Troquei o divã pelo passeio na rua, com iguais benefícios cardíacos e idênticas olheiras. Quando chega quinta-feira, meu corpo se sente objeto de antiquário, um cacareco precioso, porém rangendo. Na sexta, sou quase instalação de arte. Frágil, conceitual e à espera de patrocínio.
Dormir cedo seria a saída diplomática. O problema é que a diplomacia, aqui, se deita depois da meia-noite. No máximo, entrega um visto provisório à meia-noite e meia. Adoro a ideia de puxar o cobertor às nove, mas a prática se recusa a carimbar esse passaporte. Penso então na casa da minha irmã Ivani, onde telefonar após 19h30 beira a blasfêmia. No último dia 3, aniversário do Leonildo, meu cunhado, mandei parabéns ao amanhecer prometendo ligar mais tarde. O “mais tarde” chegou às 19h05: tarde demais, ele já dormia. Há algo de monástico nesse fuso horário doméstico que, confesso, me causa vertigem — como quem visita um mosteiro e percebe que os sinos tocam não para chamar, mas para expulsar os incrédulos.
Ainda assim, cultivo fantasias ousadas: às 21h em ponto, pijama engomado, dentes escovados, smartphone exilado. Às 21h30, logo após o Jornal Nacional, adormecer no gesto pleno de quem vence a teimosia do mundo. Talvez um dia. Por ora, contento-me em bocejar com elegância, enquanto Lupita volta da aula de etiqueta canina abanando o rabo. Um relógio de pêndulo que me lembra: amanhã tudo recomeça, e o sol, coitado, lamentará mais uma vez chegar atrasado à própria festa.