É raro, mas eu conheço atores que nascem com a cena no sangue. Não é apenas talento, é algo mais fundo, como uma ferida de origem ou uma vocação antiga, daquelas que atravessam gerações sem pedir licença. Tenho pensado muito em um deles, talvez porque, algum tempinho atrás, ele fez um post em uma de suas redes sociais — desses comentários um tanto apressados — sobre uma peça minha. Uma opinião lançada ao vento, sem nem ter estado na plateia. E, juro, em vez de raiva, o que me veio foi uma espécie de melancolia suave. Porque eu o conheci ainda menino, pouco mais de vinte anos, recém-saído de uma universidade pública importante, com os olhos acesos de quem queria devorar o mundo. Trabalhamos juntos nos primeiros passos da carreira profissional dele. Lembro bem da primeira vez em que entrou em cena: havia uma fome. Não era só técnica, era uma entrega física, emocional, quase animal, que fazia o público esquecer que aquilo era teatro. Era vida. Era agora.
Ao longo dos anos, acompanhei sua trajetória de longe, como se observa o crescimento de uma árvore plantada num quintal vizinho. Vi quando ganhou prêmios, quando brilhou em Shakespeare, quando enfrentou personagens que exigiam dele o que só os grandes enfrentam: o abismo de não saber se, no dia seguinte, o corpo e a alma ainda dariam conta de mais uma sessão. Ele deu conta. Mais que isso: encantou. Reconfigurou cenas, personagens e, por vezes, toda a encenação ao seu redor.
Mas há também o outro lado da história. O lado que a psicanálise, com sua paciência de relojoeiro, costuma chamar de sintoma. Nas redes sociais, esse mesmo ator — agora mais maduro, perto dos quarenta — optou por um tipo de ironia que não é a ironia sofisticada dos céticos, nem a autoironia de quem conhece os próprios limites. É uma ironia infantil, pontuada por uma espécie de gozo em menosprezar o outro. Em especial, o outro que escolheu caminhos diferentes: os coletivos de teatro, as experiências de pesquisa, as dramaturgias frágeis, os processos erráticos, os artistas que ainda tateiam.
É uma pena. Porque talento, ele tem de sobra. Técnica, também. Falta talvez a generosidade de perceber que o teatro, como o mundo, é um organismo múltiplo, feito de tentativas e erros, de linguagens e silêncios, de sucessos e tropeços. O teatro não é um concurso de certezas. Nunca foi.
Imagino às vezes como seria se ele colocasse sua inteligência a serviço do diálogo e não da demolição. Se ao invés de ridicularizar o que desconhece, ele se aproximasse. Escutasse. Se ao lado da precisão de sua voz em cena, viesse também a delicadeza da escuta fora dela.
Porque o que ele tem como ator é raro. O que ele construiu até aqui poderia, facilmente, se tornar uma das grandes forças propulsoras da cena paulistana. Mas para isso, talvez, fosse preciso abrir uma fresta. Uma só. Pequena. Mas sincera.
E é curioso: sempre que penso nele, me vem a imagem daquela primeira apresentação, há tantos anos. A urgência. A entrega. A vontade de estar inteiro. Talvez seja ali, naquele garoto de vinte e poucos anos, que ainda habite o melhor de tudo o que ele pode ser.
Quem sabe um dia ele mesmo volte a se encontrar com esse menino.