Hoje queria falar de amores. Não daqueles que cabem facilmente nas molduras que a sociedade ergueu. Quero falar dos outros, os que transbordam, os que soam estranhos porque não são imediatamente reconhecidos. Às vezes nem pela família, às vezes nem pelos vizinhos que os veem todos os dias. Mas são eles, justamente eles, que revelam a vastidão do amor humano.
Há o amor da Maria e da Lena. Uma vida inteira de arte, de delicadeza, de luta. Ambas consagradas em suas potências criadoras: Maria, artista visual, gravurista e escultora; Lena, fotógrafa, curadora, galerista. Companheiras, cúmplices, espelhos uma da outra. Neste momento, no Paço Imperial, no Rio, Maria exibe sua obra, mas, por detrás de cada imagem, pulsa também a presença de Lena. Estranho amor? Talvez aos olhos de quem ainda espera do amor formas previsíveis. Mas, diante das duas, o que se vê é a beleza da complementaridade, o cuidado mútuo, a persistência de uma paixão que não se deixa reduzir a normas.
Há também o amor de Julia. Suas meninas: duas gatas, duas cachorras. Quatro destinos atravessados pelo tempo. Três delas já na velhice, carregando doenças sérias, exigindo atenção vinte e quatro horas por dia. Julia dedica-se inteira a elas, num luto suspenso, num presente carregado de memórias de Fabio, seu companheiro humano que se ausentou recentemente. O amor por ele não precisa de explicação. A sociedade entende. Mas como compreender essa entrega radical aos bichos, esses turnos intermináveis de cuidado? Estranho amor? Sim. Mas também milagre. O milagre de transformar a dor em presença, de fazer da fragilidade uma casa.
Eu mesmo poderia ocupar esse lugar de estranhamento: meu amor pelo Rodolfo. Trinta e seis anos de vida compartilhada. Trinta e seis anos de cumplicidade, de reinvenções. Como é possível que a intensidade não se esgote? Como se explica uma convivência tão duradoura que, em vez de aprisionar, liberta? O que se aprende diariamente com o outro? Talvez só se explique pela fé silenciosa de que alguns encontros são milagres. Milagres teimosos, que sobrevivem à passagem do tempo como árvores centenárias que resistem a todas as tempestades.
E há ainda os amores que inventam linguagens próprias. Penso na minha amizade com Ulrika, sueca, minha irmã de coração há mais de quinze anos. Ela faz aniversário hoje e é uma das minhas melhores amigas. Mas tudo nessa relação é estranho. Eu não falo sueco nem inglês; ela não fala português. E, ainda assim, nos entendemos. Como? Pelo gesto, pelo olhar, pela sintonia que não cabe em dicionários. Pelo Google Tradutor também, por que não? Estranho? Sim. Mas é justamente na estranheza que mora a poesia.
Penso também no meu gato João, que durante um ano viveu entre a vida e a morte. Transformamos a casa em clínica, Rodolfo aprendeu a aplicar soro, eu ajustei meus horários de trabalho para ministrar remédios. João partiu. E eu chorei dias inteiros, lágrimas teimosas tentando incorporá-lo de novo à rotina, como se ainda estivesse ali. Até hoje, sem querer, às vezes o procuro.
E então percebo: estranhos não são os outros. Estranho é o modo como o amor se recusa a caber nos rótulos. Estranho é que ele resista, que ele insista, que se multiplique em formas imprevistas. Estranho é que sobreviva à morte, à distância, ao silêncio, às línguas incompreensíveis. Estranho é que seja, no fim das contas, a nossa forma mais íntima de humanidade.
E é nessa estranheza que nos reconhecemos. Que nos amamos. Que seguimos.