DESPEDIDA | O Ensaio Invisível das Despedidas

Eu estava passeando pelo Instagram da Cléo De Páris quando me deparei com um post dela com a frase “a vida não avisa quando algo está acontecendo pela última vez.” Então eu pensei nos gestos que acontecem como sussurros fora de um roteiro preestabelecido e que só iremos saber que era cena final quando a luz já se apagou. Porque se a vida fosse teatro, haveria ao menos um contrarregra cochichando “acabou” atrás da cortina. Mas não. Seguimos atuando sem saber quando a peça troca de nome e vira lembrança.

Penso no Dimi, meu irmão. 2017 foi o ano em que a cronologia se embaralhou: duas cirurgias, quase doze meses de voltas provisórias, aquele corpo-palco entregue à cama como se o lençol fosse mar. Na última visita ele não falava, eu não sabia se ele escutava, e mesmo assim conversei sobre coisas simples — asfalto quente de Ribeirão Claro, carne de porco feita na panela de barro, conversas intermináveis à luz apagada antes de dormir — apostando que alguma frequência subterrânea ainda nos ligava. A real despedida, porém, deve ter sido antes disso, em algum momento entre o Natal e o Ano Novo, em Parelheiros. Não houve subida de cortina nem aplauso: só a vida trocando de ato sem avisar o elenco.

O mesmo enigma paira sobre minha mãe. Seu último ano foi um novelo de Alzheimer em que cada palavra escapava do próprio significado. Qual terá sido a derradeira conversa? Talvez um “até já” dito na cozinha, talvez o silêncio partilhado enquanto a panela de pressão chiava. Nada assinalou que aquele parágrafo seria ponto-final. Depois, as frases viraram fumaça — e toda fumaça, sabemos, é já lembrança do fogo.

No Satyros é parecido: raramente sabemos que uma temporada chegou ao fim. Há sessões em que alguém esquece um figurino no camarim e volta meses depois para buscá-lo — encontra apenas pó e ecos. Quando damos conta, o espetáculo já virou outra coisa, feito rio que muda o leito enquanto o público toma uma cerveja.

Algumas despedidas, no entanto, vestem anúncio em neon. Lembro de Cacilda: o último abraço tinha gosto de mel e metálico, mistura esquisita de gratidão e ferrugem. E lembro do Chico — aquele domingo em que o mundo pareceu conter a precisão de um relógio suíço: eu sabia, ele sabia, nossas respirações rimavam como duas notas sustentadas que terminam juntas. Naquele instante, pelo menos, o palco foi gentil o bastante para sussurrar “blackout”.

Talvez a única técnica para lidar com esses atos finais seja continuar ensaiando. A cada vez, repetimos falas, afinamos gestos, atravessamos a praça como se fosse estreia. Quem sabe o truque seja tratar cada encontro — com irmãos, mães, cachorros, plateias — como ensaio geral e última sessão ao mesmo tempo. Não por tragédia, mas por ética do afeto: se eu não sei quando o blackout final acontece, que surja sobre algo que valha o ingresso.

No fundo, viver é isso: um espetáculo de temporada indefinida em que os aplausos mais importantes nunca chegam aos nossos ouvidos. E, se não temos garantia de uma outra chance, que ao menos haja verdade na voz que ainda pode ser ouvida — mesmo que seja por um ouvido que já se despede em silêncio.

Foto: Reprodução/Instagram (@omario2d)

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1853

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