CRÔNICA | Manual de Sobrevivência para Quem Quase Descansa

Há quem diga que férias são um direito. Há quem diga que são um luxo. Eu digo que são uma miragem. Belas e cintilantes, dançam diante dos olhos como promessa de descanso, mas, quando a gente chega perto, elas escorregam feito sabonete em vestiário coletivo.

 

Na semana que vem, parto de férias. Ou melhor, finjo que parto. Porque, convenhamos, férias mesmo, daquelas em que o mundo esquece seu nome, o celular perde a memória e ninguém te chama pra “só uma reuniãozinha rápida”, essas eu só vi em novela das seis.

 

Trabalho desde os quinze anos. E desde então, férias são uma espécie de conto de fadas sindical. Fala-se muito delas, mas quando chegam, vêm com rodapé, anexos e alerta de “pode ser interrompido a qualquer momento”. Já acumulei duas sem usá-las. Em novembro vem mais uma. Três férias represadas: se eu fosse um banco, já era caso de intervenção federal.

 

Mas o que me consola, e aqui entra a poética da coisa, é que mesmo um tempo improvável, um descanso cheio de arestas, pode ser fértil. Só o fato de não ter uma agenda que me estrangule já é o começo de um respiro. Não me engano. Não ter horário não é não ter trabalho. Mas é poder sonhar com outra frequência. Um tempo que se alarga, ainda que por ilusão. Uma pausa que, mesmo com interferência, traz uma fresta de silêncio.

 

Talvez isso seja o mais próximo do paraíso. Um intervalo irregular, mas com cheiro de liberdade. Um desvio da rotina que permite olhar o mundo com outras lentes, ou, ao menos com óculos escuros. Mesmo que ninguém tenha prometido que seria diferente. Mesmo que as responsabilidades, esses filhos ingratos, me chamem de volta no meio do descanso. Ainda assim, sigo. Tentando. Inventando. Refazendo mundos. Até que me deixem. Ou até que o corpo grite. Ou até que, um dia, de verdade verdadeira, eu desligue tudo e atenda ao chamado ancestral do nada.

 

Até lá, sigo ensaiando o descanso. Porque, se o descanso é raro, o desejo por ele é o que me move. E isso, felizmente, ninguém me tira.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1877

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