Há encontros que deixam marcas permanentes em nossas vidas. Assim foi quando conhecemos Ulrika Malmgren e Katta Pålsson, duas atrizes que brilharam nos anos 1980 e 1990 com o grupo Darling Desperados, criado por elas, na Suécia.
O grupo, essencial para a cena teatral sueca, percorreu o mundo, espalhando sua arte, levando histórias que se entrelaçaram com as nossas, nos unindo em uma teia de memórias.
Nosso encontro com elas não foi mero acaso. Compartilhamos o palco em “Cabaret Stravaganza”, um espetáculo que nos uniu em uma cumplicidade artística que transcendeu as fronteiras do Brasil e da Suécia.
Quando levamos essa peça ao Unga Klara, em Estocolmo, aquele momento tornou-se um marco na trajetória da minha companhia, Os Satyros. Ulrika já era uma figura central na UniArts de Estocolmo, a escola que formou Greta Garbo, vejam só! E foi a partir dessa conexão que nasceu uma ponte entre a Suécia e o Brasil, com estudantes indo e vindo, enriquecendo a SP Escola de Teatro e a UniArts com trocas vibrantes e cheias de significado.
Foram tantas histórias que nos conectaram de formas profundas! Lembro-me da viagem inesquecível à Califórnia, onde vivemos dias repletos de aventuras, risadas e descobertas. Cada momento era uma mistura perfeita de diversão e cumplicidade, algo que se repetia em tantas outras ocasiões. Nas noites pela Praça Roosevelt, entre conversas sem fim e taças de vinho, compartilhávamos ideias, sonhos e planos. Essas reuniões informais, cheias de vida e energia, muitas vezes se transformavam em discussões sérias sobre nossos projetos, que, como nós, não conheciam fronteiras. Projetos que literalmente cruzaram oceanos, conectando nosso trabalho entre Brasil e Suécia, e nos unindo ainda mais em uma parceria que vai além do profissional.
Há cerca de dois anos, Ulrika e Katta nos pediram um presente: um texto para marcar o retorno delas aos palcos, depois de duas décadas distantes dos holofotes. Foi assim que nasceu “Snön i Brasilien – Anna du kan väl stanna”, uma peça que acaba de estrear na Suécia.
Hoje, reencontramos Ulrika e Katta, em um daqueles momentos que parecem fora do tempo. Elas nos chamaram em uma reunião pelo Zoom para agradecer. As palavras se misturavam com sorrisos e uma leve emoção no ar.
Contaram-nos sobre a recepção calorosa da peça, sobre as lágrimas dos espectadores, algo que Ulrika sempre acreditou ser raro no público sueco. E, no entanto, lá estavam eles, emocionados, permanecendo no teatro após o fim da apresentação, querendo conversar, trocar, agradecer. Disseram-nos que o público via esperança no texto e que riam muito durante a peça.
A peça, dirigida por Rodolfo, desenrola-se ao redor de Anna e Jonna, irmãs criadas no colorido e itinerante mundo do circo, que conquistaram a fama ainda crianças na televisão sueca. Suas vidas, no entanto, estão impregnadas pelo peso da história. A fuga da mãe judia para a Suécia, durante a Segunda Guerra Mundial, e a separação da irmã que escolheu o Brasil como destino, trazem consigo o silêncio de um reencontro que nunca se concretizou. Cartas, tão distantes quanto os continentes que separavam essas vidas, foram o fio frágil que as manteve unidas ao longo dos anos.
A irmã que partiu para o Brasil é um enigma, uma história que se esvai como a névoa ao amanhecer. A que permaneceu na Suécia, por sua vez, seguiu a vida no circo, casou-se, teve duas filhas, Anna e Jonna, agora idosas, envoltas na solidão. É nesse cenário que a narrativa se inicia, com a delicadeza de quem toca nas feridas da memória, da família e do isolamento que, tantas vezes, acompanha a vida do artista.
Talvez seja isso que tanto toca o público. A peça nos lembra que, mesmo em meio à solidão, há a poesia dos reencontros, ainda que tardios. Afinal, somos todos feitos de memórias e distâncias, e é na confluência desses dois elementos que a vida encontra seu sentido mais profundo.
* Foto da animação criada especialmente para o espetáculo pelo artista argentino Franco Veloz, que vive na Suécia.