Nasci numa casa de madeira amarela, janelas azuis — o ponto onde o asfalto desistia e começava o mato. Era o quinto de seis filhos: um pedreiro que lia o mundo com as mãos, uma costureira que conseguiu estudar só até a quarta série. Ali a pobreza não era drama, mas substância: como a gravidade, simplesmente era. Aprendi cedo que carência não chora — define coordenadas.
Entre riachos e cachoeiras, a infância parecia infinita, embora já contivesse a intuição de que o tempo não é volume, mas tensão. Ele não “passa”; somos nós que somos exigidos a atravessá-lo, como quem se equilibra na lâmina entre um instante e outro. Kierkegaard dizia que a vida só pode ser vivido olhando-se para a frente; Bergson lembraria que essa projeção é sempre memória que se dobra. Cresci, portanto, na dobra.
Quando faltava tudo, descobria-se a argamassa do real: a incapacidade de acelerar o cronômetro obriga a negociar com ele. Não se “vence” o tempo — domestica-se sua desordem, desloca-se a ênfase. Ler à luz fraca de lamparina foi meu primeiro ato de engenharia temporal: cada página abria uma fenda onde as horas se comprimiam até caberem na curiosidade. Fiz do aprendizado uma espécie de heresia contra o relógio.
Talvez por isso eu desconfie do verbo “superar”. O inverno não é suplantado; apenas cede lugar à primavera porque ambos pertencem ao mesmo circuito. Ocorre o mesmo conosco: a cada ciclo não somos melhores — somos outros. O tempo não mede crescimento, mas metamorfose. Cambiamos de pele como a árvore troca a casca, sem direito a volta.
Mais tarde, com o passaporte finalmente carimbado, percebi que mudar de fuso não muda a natureza desse enigma: em Tóquio a urgência tem timbre de néon; em Lisboa o minuto hesita à beira do Tejo; em Berlim, vibra como trilho de metrô. Viajar é apenas observar dialetos de cronologia. Nenhum deles, contudo, cancela o paradoxo central: existir é ser simultaneamente provisório e teimoso.
Volto ao menino sem fortuna. Ele priorizou o estudo não por virtude, mas por pragmatismo: páginas custavam menos que qualquer outro bilhete de fuga. Hoje ele atravessa palcos e fronteiras com bolsos ainda módicos, mas carregado de temporalidades que não cabem em cofre. De Nietzsche aprendeu que “não existe fato, apenas interpretação”; de Camus, que a lucidez não redime, mas amplia o raio de ação. A solução foi continuar, sempre: verbo transitivo sem objeto final.
E aqui estamos: nem heroísmo, nem lamúria. Apenas a constatação de que viver vale — não apesar do tempo, mas graças a ele. A condição pobre foi contingência; a escolha de educar-se, estratégia; o percurso, labirinto. O resto é este instante que se desfaz enquanto você lê, abrindo o próximo, onde — outra vez — tudo pode ser redesenhado.