CRÍTICA | Satyros criam os meios e a ânima para o teatro na pandemia

Crítica ao espetáculo A Arte de Encarar o Medo/The Art of Facing Fear.

Por Rodrigo Nascimento e Kil Abreu

Olhar para a tela e não para a cortina fechada. Esperar não os três sinais de aviso do início da peça ou o pedido para que se desliguem as câmeras e celulares, mas justamente o contrário: esperar que o celular esteja mais ligado que nunca, pois sem ele não haverá espetáculo. Não o corpo disciplinado na poltrona do teatro, o silêncio na plateia, a tensão viva do corpo do ator presente, mas o sofá de casa, o barulho da vizinhança e a imagem na tela fria.

A Arte de Encarar o Medo é em grande medida a aceitação do risco de chamar teatro esse novo ritual híbrido. E sim, é de teatro que se trata – porque é experimento que vem não como um acordo acrítico a partir de uma ausência, ou subjugo passivo aos mecanismos da máquina e da virtualidade. As montagens se apropriam, ocupam os meios ao mesmo tempo que deixam ver o trabalho para discipliná-los a favor da linguagem.  Esta é uma boa notícia porque sabemos que para um teatro mais próximo do formalismo strictu sensu os meios tendem por vezes a ser reduzidos aos seus próprios fins. No caso seria falta grave, dadas as circunstâncias em que este teatro se inventa: sua dimensão ética, o compromisso por encontrar os mecanismos úteis, não para exibi-los mas para promover a mediação de pensamento que pede para ser feita.

O projeto é uma ousadia, se lembrarmos que as tarefas em torno das operações estéticas que ele envolve multiplicaram-se em três montagens envolvendo cerca de uma centena de artistas, de dez países diferentes. Os espetáculos vêm a público desde Junho passado, com elencos e grupos da Nigéria, do Zimbábue, do Reino Unido, da Suécia, da África do Sul, da Alemanha, dos EUA, entre outros. Todos on-line, mas em lugares distintos, tornam pulsante aquilo que é improvável no teatro tradicional: a simultaneidade temporal na disparidade espacial. Os trabalhos acontecem então abraçando e explorando o que a internet anunciou, mas quase nunca leva a cabo, pois sucumbida à dinâmica da mercadoria: ser uma rede mundial, ser uma teia para viabilizar contatos, ser ferramenta de diálogo horizontal.

Também nessa área das relações entre os instrumentos e as finalidades torna-se logo evidente que Os Satyros sabem que não se trata, agora, de apenas filmar uma peça. Não se quer apenas registrar uma mise-ens-ène e transmiti-la, para que as pessoas possam vê-la no isolamento doméstico, gesto que por vezes gera em nós a incontornável sensação de uma ausência: “eu poderia estar ali, naquele teatro”.  O espetáculo não quer ignorar o impasse, pelo contrário: quer enfrenta-lo nas questões de fundo e de forma.  Apresenta uma fábula distópico-futurista que tem como ponto de chegada a reflexão sobre nossa perplexidade e sobre a ação diante da doença e de seus contextos sociais e políticos. E como toda fantasia futurista que interessa, no fundo ela reflete, paradoxalmente, as urgências do presente. Configura-se, quem sabe, uma espécie de oração desesperada, tecnoviva, pelas milhares de pessoas que o vírus levou, com a anuência de muitos governos, no Brasil e no mundo. Provavelmente também por isso o grupo busca os meios possíveis de agora, mas testando-os de modo radical, instalando horizontes formais frescos. E é nesta tensão entre as formas e as condições dadas que se produz a viravolta na crise e se arranca alguma possibilidade de futuro.

Vida privada, medo público

As montagens nos convidam à interação, fazendo do chat da plataforma não só um espaço para o depósito de comentários, mas uma fonte de material dramatúrgico. O espectador é convidado a compor junto aquele memorial da destruição mas, subliminarmente, também das expectativas e esperanças: “Quais têm sido os medos enfrentados por você desde que a pandemia começou?”. Ali percebemos que o vírus unificou em escala global a ansiedade e a solidão, além de revelar a crise profunda da sociabilidade contemporânea: “tenho medo de demorar a encontrar pessoalmente quem eu amo”; “tenho medo de ficarmos cada vez mais isolados”; “tenho medo da ascensão de governos fascistas”.

O sentimento em torno do mal geral não impede certos contrastes esperados. Apesar do roteiro comum, cada um dos três espetáculos procura e encontra alguns desdobramentos dramatúrgicos próprios. O coro das perplexidades compartilhadas que se formaliza tende a suspender-se, aqui e ali, para mostrar subliminarmente condições históricas distintas. Assim, ao assistir as três montagens é possível ver desenhados os traços de sociabilidades que abrem involuntariamente, na maior parte das vezes em chave lírica, espaços singulares na narrativa.  Por exemplo, entre a dor mais ensimesmada de um artista americano ou de uma atriz britânica, e as falas vindas de artistas africanos, mais marcadas por intervenções que vão do reclamo íntimo à preocupação decididamente social, a reverberar dilemas e feridas históricas. Nesse contexto, ver e ouvir artistas entoarem uma canção resgatada das lutas contra o apartheid é algo que dimensiona a situação dramática com sentido e força  épicos.

Nesta dinâmica, personagens trancadas dentro de suas casas, em lugares tão diferentes quanto agora similares, perfazem a paisagem reiterada dos medos antes privados, agora com ampla repercussão pública. Um homem explode diante da constatação de que as janelas de sua casa se assemelham a barras de uma cela; outro mergulha na paranoia. “Estão me seguindo! Vieram me pegar!”; um terceiro se pergunta como manter alguma privacidade diante do fato de que para tudo hoje se exige conexão. Movidos por vínculos obrigatórios e virtuais, a dura constatação: “Alguém está morrendo sozinho agora. E aqui estou.”

O close de cada câmera de celular ou a instabilidade da mão da personagem que se filma em desespero tornam o experimento um mosaico de câmeras-olho, um painel atordoante de documentários sincrônicos. São personagens, são pessoas, somos nós, fundindo os depoimentos, divagações e alucinações à penumbra do interior da casa. Frutos que somos de uma civilização baseada em metáforas da luz, nos deparamos com a escuridão. É a pandemia que põe em xeque toda a “positividade” do modelo civilizatório capitalista. O mesmo projeto que dizima povos originários, destrói biomas, escraviza e explora em nome do progresso e do desenvolvimento, cai por terra por não conseguir dar conta dos milhões de mortos que se empilham diante dos nossos olhos. “Meu corpo é a prova da falha humana”, dirá uma personagem. Inventamos tanto e agora colapsamos.

The Art of Facing Fear/A arte de encarar o medo, são espetáculos que se forjam nos escombros da modernidade. A mesma globalização que se candidatava a último estágio do grande projeto capitalista, agora revela sua capacidade de exportar e criticar no atacado o vírus e a morte. A globalização que prometia a conexão horizontal, em verdade acelera o isolamento, a competição e a falta de perspectivas. Mas é dessa mesma globalização, e operando em seu avesso, que mora a ânima do espetáculo. Ao final, intuímos uma globalidade naquilo que não parecia estar dado: o medo. Um coro de ansiosos, desajustados e colapsados se une na cisão. São personagens que nos leem, nos ouvem e nos convidam a compor a música final – somos nós, portanto. Por isso não há desfecho pronto para a trama. Por outro lado, é ali, olhando para a câmera fria, que se aposta na presença de alguém vivo do outro lado. E isto também é central para o sentimento que o trabalho difunde. Este alguém que quer viver. Ou ao menos uma aposta de que há desfechos menos sombrios nos esperando do outro lado.

SERVIÇO

A Arte de Encarar o Medo

Horários: Sexta e Sábado às 21h, domingo às 16h/Ingressos (R$20,00/R$10,00), em: www.sympla.com.br((Há ingressos gratuitos, dedicados às pessoas que se encontram em dificuldade financeira devido à pandemia)/Duração:  50 minutos / Classificação indicativa: 16 anos

FICHA TÉCNICA (montagem brasileira)
Roteiro: Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez
Direção: Rodolfo García Vázquez
Elenco: Ivam Cabral, Eduardo Chagas, Nicole Puzzi, Ulrika Malmgren, Diego Ribeiro, Fabio Penna, Gustavo Ferreira, Henrique Mello, Julia Bobrow, Ju Alonso, Marcelo Thomaz, Marcia Dailyn, Mariana França, Dominique Brand, Sabrina Denobile e Silvio Eduardo. Ator convidado: César Siqueira. Atores mirins convidados: Nina Denobile Rodrigues e Pedro Lucas Alonso
Orientação visual: Adriana Vaz e Rogério Romualdo
Fotos: Andre Stefano
Produção: Os Satyros Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany

Fonte: Cena Aberta

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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