CRÍTICA | Grupo Os Satyros recicla fórmulas e encena tragédia cotidiana ao retomar produção presencial

“Aurora” faz reluzir antigas fórmulas da companhia e estanca processo de desgaste causado pelo online

por Bruno Cavalcanti

Em meados de 2020, quando a pandemia do Coronavírus se estabeleceu ao redor do mundo, congelando o mercado cultural e ceifando, só no Brasil, mais de 600 mil vidas, o grupo Os Satyros seguia em bem sucedida temporada com Todos os Sonhos do Mundo, solo estrelado por Ivam Cabral que, apropriadamente, se tornou a primeira obra a migrar para o universo online com uma temporada completamente digital transmitida via Instagram.

A partir deste primeiro experimento, o grupo entrou em exílio criativo, e, quase seis meses depois, estreou A Arte de Encarar o Medo, um dos melhores projetos a estrear no universo online e também um dos principais títulos da trajetória de mais de três décadas da companhia fundada (e ainda hoje encabeçada) por Ivam Cabral e por Rodolfo García Vázquez.

Esse primeiro experimento rodou o mundo e ganhou encenações na Europa e nos Estados Unidos, além de uma versão com elenco composto por atores de diferentes países, todos apresentados online. Após essa bem sucedida primeira experiência, a companhia, em jorro criativo, encenou outros 15 títulos, com maior (Novos Normais) ou menor (Uma Peça para Salvar o Mundo) êxito criativo.

O fato é que, ao longo de 20 meses, o grupo produziu continuamente com a presença de público fiel, mostrando a força de sua produção autoral, ainda que, à medida que os espetáculos estreavam, ficava cada vez mais latente a sensação de esgotamento da fórmula desenvolvida pelo grupo.

E esse é o ponto de virada em Aurora, espetáculo que marca o retorno da companhia à sua sede na Praça Franklin Roosevelt e o reencontro com o público de forma presencial. Na montagem, em cartaz desde o dia 25 de novembro, o grupo dá bem-vindo descanso à linguagem pandêmica para olhar para o retrovisor e reciclar a fórmula de suas antigas obras.

É possível enxergar, em Aurora, ecos de obras clássicas como Pessoas Perfeitas (2014), Mississipi (2019) e seus incontáveis cabarés produzidos ao longo das duas últimas décadas. A obra enfoca a vida dos moradores de um pequeno prédio de apenas oito apartamentos localizado na Rua Aurora, no Centro de São Paulo.

No edifício moram personagens que, embora pintados com tintas absurdas, mantêm a relação da companhia com figuras à margem da sociedade, invisibilizadas ou que se fazem invisíveis em busca da sobrevivência.

Desde uma ex-freira que escolheu encontrar um novo caminho em São Paulo até uma jovem trombadinha que deixou a casa dos pais para se tornar influenciadora digital e acabou aplicando pequenos golpes e furtos no Centro da cidade para sobreviver, tudo passa pela lupa farsesca da encenação de Rodolfo García Vázquez, que busca estabelecer uma relação direta entre o público e a obra.

Ambicioso, o texto assinado por Vázquez em parceria com Ivam Cabral, constrói narrativas sólidas para suas personagens, com destaque para a ex-freira rodriguiana Justyna (Nicole Puzzi), para a Mãe (Gustavo Ferreira) e para a trombadinha Bola (Júlia Bobrow), mas se perde ao estabelecer a construção de personagens promissores, entre eles o misterioso Saltério (Cabral), a tragicômica Diega (Márcia Daylin) e Acácio (Henrique Mello), que, a despeito de seu (ótimo) intérprete resulta deslocado em meio à tragédia urbana, cotidiana e farsesca orquestrada por Cabral e Vázquez.

Inclusive, ainda que precise de mais tempo para azeitar sua relação com o texto, o elenco de Aurora conserva a força cênica que fez do grupo Os Satyros um dos principais do cenário paulistano ao longo dos últimos 32 anos.

Gustavo Ferreira encontra em sua Mãe um de seus melhores momentos em cena, assim como Júlia Bobrow, muito à vontade na pele de Bola e responsável por encenar um dos melhores momentos do espetáculo, ao estrelar coreografia carnavalesca baseada em marchinhas que sublinham o caráter saudosista da obra, sublinhado também pela inclusão de Cuore, canção lançada por Rita Pavone em 1963, que envolve a cena mais impactante da montagem.

Ainda em ajustes com o texto, Nicole Puzzi e Eduardo Chagas (Narrador) ainda devem crescer mais ao longo da temporada, entretanto constroem relação direta com o público, assim como o Saltério de Ivam Cabral. Safo, o ator valoriza personagem nem sempre à altura da história que se propõe a contar, assim como Márcia Daylin, que usa de excelente timing cômico para fazer de sua Diega figura carismática e fácil associação com o público ao se ver atormentada todas as noites pelo bar gay que funciona abaixo de sua janela.

A encenação de Vázquez mantém o frescor e a contundência das obras do grupo sem jamais apresentar os sinais de desgaste as quais as produções online quase sucumbiram (também por questões de limitação do ambiente digital).

Ainda que peque pelo excesso (80 minutos que, já ao final, soam cansativos), a montagem mantém a veia da companhia pulsante e restabelece uma linguagem própria, sublinhada pelos ótimos visagismo e figurino (Adriana Vaz), e desenho de luz (Flávio Duarte e Vázquez), mesmo longe de roçar as melhores criações do grupo.

Em cartaz no palco do Espaço Satyros, na Praça Franklin Roosevelt, Aurora é bom título de entressafra que marca a retomada das produções do grupo, ainda que nem sempre consiga driblar eventuais irregularidades que fazem com que Os Satyros se mantenham em franca evolução.

SERVIÇO:
Data: 25 de novembro a 19 de dezembro (quinta-feira a domingo)
Local: Espaço Satyros – São Paulo (SP)
Endereço: Praça Franklin Roosevelt, nº 214 – Consolação
Horário: 21h (quinta-feira a sábado); 18h (domingo)
Preço do ingresso: Grátis

Fonte: Observatório do Teatro

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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