por: Daniel Schenker
A Arte de Encarar o Medo frisa conexão com os dias de hoje. Nesse período de isolamento, marcado pela impossibilidade de realização de qualquer manifestação voltada para algum grau de aglomeração, como é o caso do teatro, a companhia Os Satyros concebeu um trabalho que não foi adaptado do palco para o meio digital; ao contrário, foi criado, desde o início, para a plataforma virtual.
O elo com o presente também fica evidente na temática. Apesar de localizar seus personagens no futuro – estão há 5555 dias em quarentena – e de destacar um panorama que soa apocalíptico – as cidades se tornaram desertas, as empresas de comunicação não existem mais –, o espetáculo de Rodolfo García Vázquez reúne personagens atados ao contexto da pandemia e, portanto, atrelados ao aqui/agora.
O medo, estampado no título, é o elemento comum que assombra todos. Antes da apresentação começar, dois atores da companhia pedem que os espectadores escrevam no chat sobre seus medos e que relatem sobre pessoas vitimadas pela covid. Em determinado instante da encenação, os atores falam as narrativas dos espectadores, apropriando-se delas ao terminarem dizendo: “eu tenho medo”. Em outras passagens, personagens assumem o medo de esquecer daqueles que morreram e de quem eles mesmos foram antes do processo de isolamento iniciar.
Trancados dentro de casa, os personagens irrompem – com frequência, em registro catártico. Expressam desespero, agem de maneira compulsiva, tentam ocasionalmente se refugiar na alienação. O sufocamento, decorrente da circunstância de clausura, é sintetizado pelo personagem com o rosto coberto por plástico, que, ao chegar ao limite da asfixia, rasga o material num pedido de socorro – cena em que a trilha sonora produz interessante fricção com a imagem de agonia.
Aprisionados num mundo que se tornou quase irrespirável, os atores/personagens surgem confinados em suas moradias – onde, às vezes, se revelam clandestinos, a exemplo da mulher que se fecha no banheiro para fumar – e anseiam por libertação, simbolizada pelo reencontro com o espaço externo. Uma situação que remete a experimentada pelo protagonista do filme O Show de Truman (1998), de Peter Weir, em que pese o fato de ali haver uma embalagem de felicidade e de o personagem acreditar, a princípio, que usufrui dos ambientes externos à sua casa.
De qualquer modo, em A Arte de Encarar o Medo, a administração da angústia, ao que parece, depende mais de uma percepção das próprias questões subjetivas do que da realização de impulsos práticos e concretos. Quem abre a porta de casa num rompante acaba voltando; quem procura respostas na visão de janelas alheias, não acha; quem sai do apartamento em busca de alguma presença, não se depara com nenhuma.
Mas, se por um lado A Arte de Encarar o Medo é um trabalho fincado no presente, por outro transcende um período histórico específico. Ivam Cabral apresenta os atores, logo nos primeiros minutos, que aparecem e tiram suas máscaras, e enumera artistas que morreram, como Phedra De Córdoba, que fez parte d’Os Satyros, Flavio Migliaccio e Bibi Ferreira. As projeções no corpo de um dos atores trazem à tona os mortos de todas as guerras. O corpo desponta como acumulador da tragédia do mundo, realçada por meio de imagens emblemáticas, como prova dos erros cometidos no decorrer do tempo.
O trânsito pelo tempo é reforçado pelas referências espalhadas ao longo da sessão. García Vázquez e Cabral, responsáveis pelo texto/roteiro, destacam peças clássicas, como Macbeth, de William Shakespeare, na conhecida passagem em que uma delirante Lady Macbeth esfrega intensamente as mãos, como se nelas houvesse um sangue impossível de limpar. A primeira cena, na qual a atriz sueca Ulrika Malmgren, trajada com adereços kitsch, tenta se conectar com a Terra como se estivesse numa Estocolmo localizada num planeta distinto traz, longinquamente, à memória Sonho, de August Strindberg, dramaturgo citado pela mesma atriz em outro instante.
A contracena entre passado e presente se dá ainda por meio da evocação do cinema mudo viabilizada, nesse trabalho, a partir do domínio de um aparato tecnológico. E os tempos voltam a se somar na menção à Praça Roosevelt, região do Centro de São Paulo que remete à trajetória d’Os Satyros, uma das companhias que ajudou a revitalizar a área ao estabelecer ali a sua sede.
Já o presente impera por meio de sinalizações ao cenário político de hoje, tanto o capitaneado pelo presidente brasileiro – Jair Bolsonaro – quanto pelo americano – Donald Trump, em cena repleta de adereços carnavalizados com efeito que lembra um pouco a contrastante sobreposição de imagens que abre o filme Dzi Croquettes (2010), de Tatiana Issa e Raphael Alvarez.
O futuro em A Arte de Encarar o Medo pode ser percebido como um presente cristalizado, estagnado, que eterniza um momento desfavorável. Uma ideia que ganhou destaque, de diferentes formas, no cinema – a repetição de um único dia para o protagonista de Feitiço do Tempo (1993), de Harold Ramis, e o retrato de uma Buenos Aires sempre chuvosa em A Nuvem (1998), de Fernando Solanas, e de um Recife congelante em Recife Frio (2009), de Kleber Mendonça Filho (ainda que, aqui, haja uma transição para pior, mostrada com humor no último plano).
O presente descrito na encenação é um tempo sem personalidade, como fica claro na observação que a mãe faz à filha ao lembrar das coisas de que gostava antes da pandemia. “Tudo no mundo tinha cheiro”, afirma. Mas a desesperança não domina o espetáculo, a julgar pelo final, com o texto Primavera, de Cecília Meirelles, e a música Amanhã, de Guilherme Arantes. O espectador é colocado frente a personagens permanentemente ameaçados, mas o fatalismo não se impõe como modo de ver o mundo.
Esse encerramento, a cargo de Ivam Cabral, é mais contido que boa parte da encenação, atravessada por atuações caricatas, expansivas, registro estilizado que distancia atores de personagens quando, na verdade, os primeiros estão inevitavelmente próximos ao universo no qual os últimos se encontram inseridos. As interpretações exteriorizadas, juntamente ao ritmo vertiginoso, talvez manifestem a inquietação interior do indivíduo diante de um momento de suspensão, em que praticamente tudo parou.
Mas A Arte de Dominar o Medo é atravessado por certa uniformização das cenas. Rodolfo García Vázquez até procura imprimir alguma diversidade de estilo ao entrelaçar a voltagem do desespero com certo investimento na comédia. Há, porém, uma (compreensível) energia de urgência que massifica, em alguma medida, o resultado, que não chega a se tornar realmente angustiante ou divertido, ainda que permaneça instigante nas articulações que provoca.
Fonte: Daniel Schenker