CRÍTICA | Cabaret Dada, por Tânia Brandão

E no teatro, esta semana, duas iniciativas associáveis a esta busca merecem destaque. De saída, vale destacar a nova estreia online e ao vivo, no dia 11 de setembro, da cia Os Satyros, Cabaret Dada, dramaturgia de Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, direção de Rodolfo García Vázquez. 

A montagem, a 15a. produção do conjunto na pandemia, uma marca impressionante, surpreende ao apontar os refletores para um dos grandes impasses da trama-Brasil, exatamente a difícil relação do país com o processo da modernidade. Talvez o grande estrangulamento do país tenha ocorrido aí, quando era preciso sair da sociedade de castas escravista e ingressar na sociedade de classes. A máquina traria liberdade e apagamento para o cidadão. 

Pois a pergunta forte da cena é precisamente como cada sujeito, em particular o sujeito criador, se relaciona com um universo de crise instaurado com a modernidade? A pergunta esteve na pauta do movimento dadaísta, quando, em Zurique, há cerca de cem anos, os artistas buscavam no Cabaret Voltairedimensionar os limites da vida diante de um cenário devastador – primeira guerra mundial, gripe espanhola, crise dos impérios coloniais, terceira revolução industrial. 

Época do  nascimento do moderno, o dadaísmo pensa o esfacelamento do sujeito, a derrubada e a reinvenção das instituições, a revisão dos valores humanos fundamentais, a derrocada do poder de expressão da arte. Transitar nos limites, de certa forma, seria um tema forte para dar conta do projeto dada, quem sabe uma sugestão inspiradora para um país colonial às voltas com a falência de velhos sonhos de grandeza e poder. 

Há, contudo, um outro olhar. Um outro eixo de reflexão tratará também o tema do pensamento e da arte, mas sob uma orientação diversa. Neste caso, a incursão acontece no interior mesmo das tradições e convenções, para ampliar as matrizes racionais estabelecidas. A opção norteia a montagem de Helena Blavatsky, a voz do silêncio, de Lucia Helena Galvão, direção de Luiz Antônio Rocha, com a atriz Beth Zalcman. O monólogo volta ao cartaz ao vivo e on line depois de uma longa carreira de sucesso.

Na proposta, além da exposição de um recorte das ideias da pensadora Helena Blavatsky (1831-1891), nome central para a estruturação da Teosofia, há uma proposta de reflexão a respeito da construção da cena teatral. O espetáculo busca lidar com a construção da visualidade a partir do conceito de sfumato, de Leonardo da Vinci. Nesta visão, trabalha-se com a construção difusa dos volumes, com o apagamento de linhas e fronteiras. 

Ao redor do conceito, indicativo de um olhar estético muito estruturado, a direção de cena, a direção de arte, o cenário e os figurinos foram um tanto adiante e buscaram referências nos quadros de Manet. Sob a luz de uma vela, um quarto simples no frio de Londres envolve o último dia de vida da escritora. Ela revê  os seus caminhos e obras, as suas convicções e grandes encontros e convida a plateia a pensar o sentido de suas escolhas. 

Em uma palavra, a cena convida a plateia para um mergulho interior, uma experiência de redimensionamento da vida. A rigor, a visão esfumada do mundo objetivo surge como uma ferramenta hábil para que se pergunte o quanto o sujeito pode participar da construção da vida. O quanto do mundo é construção, o quanto se pode mudar no que é pré-dado?

Alentador, não? Nada melhor se poderia desejar num mundo em crise: a âncora salva vidas do pensamento, lançada ao grande mar da plateia pelo teatro. Se a semana da pátria traz urgências mais racionais do que sentimentais diante deste desastre chamado Brasil, que a cena nos socorra com a sua generosidade e nos mostre que não precisamos de heróis, mas de pensamento a respeito do sentido do heroísmo. Precisamos, sim, saber quem são os nossos heróis, mas para nos tornarmos heróis de nós mesmos.

Fonte: Folias Teatrais

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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