Consolação

Mas há tanta tristeza e desolação por ali que sequer consigo me mover. Ensaio uma despedida mas as pessoas continuam a puxar conversa.

— Na semana passada ela me abraçou forte. Foi um abraço estranho. Me apertou contra a parede e tinha um olhar esquisito. Falou com voz de homem: Me dá um abraço. Enquanto me abraçava daquele jeito, olhou pras facas em cima da pia. Eu estava com medo. Respirei fundo e só consegui dizer: Por favor, eu tenho filho pra criar.

Ela estava atrás do balcão. Suspirou forte e continuou, agora baixo:

— E agora morreu. E estava nua. Nuazinha como veio ao mundo.

Eu olho pra rua. O homem da limpeza pública limpa o asfalto rubro-negro. O dia está cinza escuro. Olho pro relógio da igreja da Consolação. Falta pouco para o meio-dia.

O dono da barbearia vizinha se aproxima de nós. Também está triste. Pede um café e se senta numa das mesas do bar. Eu me lembro da única vez em que havia conversado com a menina transexual de 23 anos. Ela não era de muitos amigos e falava pouco. Enquanto tento me lembrar do que havíamos falado neste encontro, uma mulher que está sentada numa outra mesa começa a falar.

— Era droga. Meu filho tinha quinze anos. Meu único filho. Enquanto ouvia o Renato Russo, se atirou do décimo segundo andar.

Todos ali no café olham pra ela. Percebo seus olhos vermelhos.

Me lembro que estou atrasado. Mas há tanta tristeza e desolação por ali que sequer consigo me mover. Ensaio uma despedida mas as pessoas continuam a puxar conversa. A dona do bar se aproxima. Também está triste:

— A Babilônia viu quando ela se atirou. Cinco e meia da manhã. Disse que ela deu três rodopios antes de se espatifar no chão.

Um pouco mais de silêncio. A mulher, mãe do menino que ouvia o Renato Russo, se apressa:

— Três rodopios?

— Sim, três rodopios, contadinhos. A Babilônia viu, responde a funcionária detrás do balcão.

— Então ela foi salva, concluiu a mãe desolada, sentada numa das mesas.

Fiquei curioso. Salva pelos três rodopios?

— Porque ela morava no sexto andar, não morava? Três rodopios mais seis, do sexto andar, dá nove. É o número da salvação. Ela foi salva, certeza!

Silêncio.

—Não foi, não – apressa-se em responder a funcionária, atrás do balcão – Porque quem a encontrou foi a Babilônia.

As pessoas ali estão surpresas.

— Imagina só uma pessoa que se chama Babilônia. Não sabem que era lá que morava o pecado? Na Babilônia? Tá na Bíblia.

— Se pelos menos estivesse vestida. Mas estava nua. Nuazinha, conclui o dono da barbearia.

Há ali um silêncio constrangedor. A mulher detrás do balcão, a mais triste de todos e que tem os olhos mais vermelhos, não se conforma. Depois de um tempo, insiste em relembrar:

— Foi um abraço muito forte mesmo. E falou com voz de homem. Logo ela, tão feminina. Eu disse pra ela: Por favor, eu tenho filho pra criar. E estava nuazinha. Como veio ao mundo.

Os sinos do relógio da igreja da Consolação começam a badalar. É meio-dia em ponto. Está muito frio e o dia continuará cinza. Eu resolvo sair em silêncio.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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