No aquecimento, os atores estão dispostos em círculo. O ritual diário é feito com dedicação. Um mestre comanda:
– Respiração diafragmática. Isso, lentamente.
Os atores – nove ao todo –, obedecem o comando e existe ali muito silêncio.
– Agora a gente inspira em quatro tempos e expira em oito.
O círculo é uníssono. Aquela preparação precede a apresentação de um espetáculo que será apresentado naquela noite.
– Agora nós vamos sentar nos ísquios.
– O que são os ísquios?, pergunta uma das atrizes. Ela é transexual.
– O último ossinho da bunda. É o osso da bacia que se encaixa no fêmur. É a porção inferior e posterior do osso ilíaco. Este aqui, explica o ator-mestre, se tocando.
A atriz transexual se toca também, entendendo a explicação. Está completamente concentrada no trabalho e faz as perguntas com muita sinceridade.
– Agora, vamos inspirar e expirar em três tempos. E a cada inspiração, contraímos o músculo do ânus. Em seguida, na expiração, relaxamos o ânus. Vamos lá? Um…
– Desculpe, uma pergunta – interrompe a atriz transexual – Prá que serve este exercício?
– Pra muitas coisas. Principalmente para conectarmos a nossa respiração com o nosso lado animal, visceral. Este é o ponto da criação, da emoção, responde o ator-mestre que continua falando pausadamente, de olhos fechados, em absoluta concentração.
Breve silêncio. A atriz transexual, enquanto vê o grupo realizar o exercício, diz, respeitosamente, também em pausas:
– Nossa, eu fazia este exercício sempre pra deixar o bumbum mais rígido. Só que, com o tempo, ele me deixou muito apertada. Comecei a ter dificuldades nas relações sexuais, sentia muitas dores.
Mais silêncio. Há um constrangimento geral. A série de preparação acaba e o espetáculo se inicia.
Já no camarim aquela história de ânus apertado não me sai da cabeça. Retomo a conversa com a atriz transexual:
– Você, enfim, acabou fazendo o exercício de contração do ânus?
– Só entre nós? Não, não fiz. Depois o meu ânus fica apertado e tenho dificuldade.
Estou embaraçado. Ajeito minha maquiagem apenas para ter algo que fazer.
– Quer saber de uma coisa? Se contrair o ânus é entrar em contato com o nosso lado animal, visceral, eu acho que não preciso me exercitar, não. Faço isso todos os dias.
Então eu entendi que teria que pensar muito a respeito. Não sobre o ânus contraído na inspiração, nem sobre os ísquios, o último osssinho. Mas especialmente sobre a vida real. Esta sim, cruel, muito cruel.