APRENDIZADO | Chatita, a menina com narizinho que cabia inteiro num sopro

Há vidas que cabem em linhas retas. A de Dona Rosário percorre galáxias elípticas. Sexta-feira, 86 voltas inteiras ao redor do sol, e ainda assim ela caminha como quem abre a primeira janela da manhã: devagar, mas sem jamais abdicar do assombro.

Madrid foi o seu berço e, ironia de ferro e canções republicanas, também a plataforma de onde zarpou para escapar de Franco. Tinha doze anos quando desceu no cais tropical — uma mala, um casaco inadequado para o calor e o sotaque a meio caminho entre o medo e a aventura. Achar futuro é isso: reinventar o próprio timbre.

No Brasil, o amor vestiu rosto de contador e advogado: Seu Odair, intérprete das planilhas e das leis, mas sobretudo leitor atento da poesia que ela ainda não publicava. Deu-lhe três filhos — Rodolfo, Raquel e Reinaldo — e um território: Santana, Zona Norte que eles pronunciam como quem declara país independente.

Quase quatro décadas depois, Odair cumpriu a quimera que Rosário costurara em silêncio. Noite após noite, ela atravessava Madrid em sonhos, encostava a testa no portão de ferro da infância e acordava antes de sentir o cheiro do pátio. Quando ela tinha 42 anos, o marido, lendo esses poemas oníricos sem precisar de papel, comprou duas passagens e disse apenas: “Voltemos, Rosário.” Era presente, resgate e declaração de amor numa mesma frase.

Chegaram num fim de tarde incandescente de julho. Rosário desceu do táxi com a segurança de uma mulher feita e o coração taquicárdico da menina que partira dali aos doze. Mal pisou a calçada, surgiu na janela do segundo andar uma senhora que, ao reconhecer aquele rosto, arregalou os olhos como quem vê um retrato ganhar carne e exclamou, sem vacilar: “¡Chatita, después de más de treinta años!” O apelido — Chatita, ou simplesmente Charo, lembrança do narizinho que cabia inteiro num sopro — atravessou o ar como uma chave antiga reencontrando a fechadura certa. O reconhecimento, tão exato e luminoso, rasgou as décadas como papel de seda e provou que a saudade às vezes é apenas memória adormecida, aguardando o toque exato para despertar.

Quando Odair partiu, muita gente achou que o universo minguaria. Enganaram-se: Rosário trocou o luto pelo verbo “aprender” e entrou na universidade. Aos setenta e tantos anos atravessou corredores acadêmicos com a leveza de caloura, como se dissesse aos calendários: “Façam-me o favor de se atualizarem.”

O resultado atende pelo nome Cinco Planetas — livro onde ela orbita lembranças, dores e pequenos assombros domésticos. Não é estreia literária. É certidão tardia de uma poeta que sempre existiu. Rosario Vazquez y Navarro Garcia assina cada verso como quem devolve à infância o carimbo que lhe negaram.

Hoje, entre uma aula de filosofia e a lapidação dos novos poemas, Rosário derrama ternura sobre os netos — Isabela e Matheus, frutos de Reinaldo com a cuidadosa Maura. Isabela produz imagens onde outros ergueriam castelos de areia; Matheus tempera o impossível até que vire aroma de domingo. E quando ri — e ri com frequência — mistura azeite andaluz ao café de coador paulista: receita exata para quem nunca aceitou escolher entre raízes.

Tenho orgulho de chamá-la amiga. Mas orgulho, aqui, é palavra modesta. Talvez seja melhor dizer que aprendo com ela a ciência dos astros: cada ano, outro planeta. Cada memória, uma órbita. Cada reinvenção, um eclipse que ilumina em vez de escurecer. Dona Rosário nos recorda, com humildade sideral, que envelhecer é apenas ampliar o céu onde cabem todas as partidas e voltas. E que, se dermos sorte, ainda ouviremos alguém chamar nosso nome na língua dos afetos — sinal inequívoco de que pertencemos, afinal, a muitas pátrias simultâneas.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1839

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