Se ainda estivesse entre nós, o geógrafo baiano Milton Santos faria aniversário hoje. Duvido, porém, que soprasse velinhas; antes, escancararia janelas, convidando o mundo a atravessar o mapa que nos ensinou a redesenhar — aquele em que bordas são elásticos e o centro, sempre, ponto de fuga para outro centro. Foi ele quem me convenceu de que a geografia não cabe em atlas de cartolina: ela pulsa em cada trajeto de ônibus lotado, em cada viela onde alguém levanta a própria biografia contra a topografia social.
Quando conheci suas ideias — por acaso, num exemplar gasto de A Natureza do Espaço que circulava entre amigos — percebi que meu lugar nunca mais seria apenas meu CEP. Seria, antes, o reflexo do mundo: um espelho capaz de devolver, ampliadas, as cores que ainda faltavam ao planeta. Milton falava de fronteiras como quem borda: costurava diferenças para que se tornassem costelas de um mesmo corpo. Desse gesto nasceu em mim a convicção de que periferia não é avesso de nada; é ponto de partida, estilingue que atira desejos lá de onde menos se espera.
Foi com ele ao alcance da mão — junto de Paulo Freire e Fritjof Capra — que desenhamos a SP Escola de Teatro. Freire ofereceu a pedagogia da autonomia; Capra, a visão sistêmica; e Milton, o eixo espacial, a bússola que gira sem repousar no Norte. Era 2010 e plantamos a escola entre o Brás, portal da Zona Leste, e a Praça Roosevelt, essa ágora que se ergueu sobre ruínas e maus presságios. Ali, Os Satyros já haviam aprendido que os meninos vindos do Grajaú ou do Pantanal da Zona Leste precisavam de mais que plateia: precisavam de um palco onde coubesse a biografia inteira, com sotaque, travessia e cicatriz.
Eis então que Milton voltou a soprar sobre nossas pranchetas. Deu nome invisível aos corredores e muniu nossas aulas daquilo que chamava “periferização do mundo”: a perversão de uma globalização conduzida pelo dinheiro, que iguala mercadorias e esquece pessoas. Se a praça nos trazia garotos amassados pela pressa alheia, a escola teria de ser contraveneno: um espaço solidário onde cada diferença fosse celebrada como linha de diálogo.
Hoje, recordo essa cartografia — a dos passos que vão da periferia ao epicentro sem pedir salvo‑conduto — e entendo por que Milton Santos segue sendo meu oráculo. Ele me lembra que toda encenação é, também, geografia: corpos ocupando espaço com a firmeza de quem reivindica existência. Lembra‑me, sobretudo, que diminuir desigualdades é redesenhar o mapa, apagar as fronteiras que o dinheiro traçou, reinstalar as que acolhem — e fazer disso, quem sabe, a dramaturgia mais necessária de todas.